Ou foi o mundo então que cresceu?

O cinema do Brasil ainda fala pouco sobre o Brasil. Em vez de perder tempo com uma lição de casa – mal feita – de estudante universitário que precisa destilar revolta como Cama de Gato (Alexandre Stockler, 2001), o cineasta brasileiro bem que poderia se dedicar a um tema rico como os anos da ditadura militar. Muito além da luta armada, da violência, das discussões por vezes utópicas sobre o idealismo patriótico, a busca da liberdade, o assunto é cenário para ricas histórias pessoais. Dois filmes que chegaram quase juntos aos cinemas brasileiros abordam esse ponto de vista da batalha que fez história.

Quase Dois Irmãos, novo longa de Lúcia Murat, foi o que menos deu certo, sem ser um filme ruim. A composição de época é mais que correta, mas a opção foi de não ter apenas um plano temporal, o que travou o desenvolvimento das personagens. Caco Ciocler e Flávio Bauraqui recebem muito bem os dois quase-amigos que se reencontram numa penitenciária. Um é um preso comum, pobre, negro, outro é preso político, classe média, branco. O confronto entre as duas realidades é o que mais chama a atenção principalmente quando elas se misturam e passam a interferir uma na outra. É o momento onde as prioridades mudam e o que se acredita acompanha essa transformação.

O filme erra quando tenta estabelecer conexões entre as épocas. O plano factual é dispensável apesar de bem fotografado. A versão contemporânea dos dois protagonistas não tem fôlego. E o filme-denúncia que se desenha quando Maria Flor sobe a favela, além da falta de originalidade, não traz nada de muito relevante ou pertinente para o que o longa se propunha de início. Apesar da irregularidade, Murat prestou um enorme serviço a sua imagem, deixando para o limbo seu filme anterior, Brava Gente Brasileira (2001), um dos piores da safra mais recente do cinema brasileiro.

Toni Venturi, diretor de Cabra-Cega, conseguiu um resultado muito melhor. O encontro entre o ativista político e uma companheira que o ajuda na clausura forçada rendeu um bom filme, que não sofre o mal das ideologias desgastadas pelo tempo. Venturi – junto com o roteirista Di Moretti – conseguiu não perder o foco no pessoal e, pela lupa, apresentou uma bela história de descoberta e identificação. Mais que isso, as personagens projetam o que lhes falta uma nas outra. Mesmo sem se aprofundar na relação, o filme é tão delicado com os dois protagonistas que seus pequenos pecados, como não valorizar os coadjuvantes, viram detalhes.

O diretor tomou a acertadíssima decisão de deixar de lado o magoado ranço derrotista para com a ditadura, praxe em filmes com essa temática. Cabra-Cega não é ressentido, apesar de reproduzir “um ideal revolucionário”. Isto está muito claro na bela interpretação de Leonardo Medeiros, um dos grandes atores do Brasil, cuja personagem tem o espírito de combatente da liberdade, mas não se prende a uma interpretação contaminada. Por sinal, o reencontro de Medeiros com Débora Duboc é um exemplo de interação. A dupla que já havia feito o belo (belo mesmo) curta de Bel Bechara e Sandro Serpa, Onde Quer que Você Esteja (2003), dá textura às duas personagens.

Fernanda Porto, geralmente muito chata, fez bonito na trilha sonora, recuperando Chicos Buarques clássicos. A versão da maravilhosa Roda Viva é feia, apesar dos vocais divididos com o autor, mas a releitura de Construção é muito boa. As músicas embalam cenas que mostram um cineasta amadurecido em relação ao insípido Latitude Zero (2000), seu filme anterior. Há o ônibus, há o sexo, há Jonas Bloch prendendo o choro. e há a belíssima cena final, onde pela primeira vez se forma um grupo de verdade a partir de um silencioso pedido de perdão.

QUASE DOIS IRMÃOS
Quase Dois Irmãos, Brasil, 2005.
Direção: Lúcia Murat.
Roteiro: : Lúcia Murat e Paulo Lins.
Elenco: Caco Ciocler, Flávio Bauraqui, Maria Flor, Marieta Severo, Fernando Alves Pinto, Werner Schünemann, Renato de Souza, Luiz Melodia, Babu Santana.
Fotografia: Jacob Sarmento Solitrenick. Montagem: Mair Tavares. Direção de Arte: Luis Henrique Pinto. Música: Naná Vasconcellos. Produção: Aílton Franco e Branca Murat.

CABRA-CEGA
Cabra-Cega, Brasil, 2005.
Direção e Produção: Toni Venturi.
Roteiro: : Di Moretti, baseado num argumento de Fernando Bonassi, Roberto Moreira e Victor Navas.
Elenco: Leonardo Medeiros, Débora Duboc, Jonas Bloch, Michel Bercovitch, Bri Fiocca, Odara Carvalho, Milhem Cortaz, Renato Borghi, Walter Breda e Elcio Nogueira.
Fotografia: Adrian Cooper. Montagem: Willem Dias. Direção de Arte: Cláudia Minari. Música: Fernanda Porto. Figurinos: Carolina Li. Site Oficial: www.cabracega.com.br.

rodapé: Dois anos sem telefone celular acabaram. E o sossego também.

nas picapes: Roda Viva, Chico Buarque.

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