A Última Noite

Era uma vez um país chamado… era uma vez um país sem nome. Os que criaram este país resolveram fazer todo mundo acreditar que o nome deste país era o nome do continente onde ele ficava. Eles foram convincentes. Tanto os que moravam neste país quanto os que estavam fora acreditaram nisso e passaram a chamar o país pelo nome que era de muitos outros. O povo deste país se acostumou a acreditar também que o país em que eles viviam era o melhor país do mundo, que existia uma espécie de energia inerente àquela terra, àquele povo, que era diferente e muito maior que as que existiriam além de seus limites territoriais. Eles cresceram e se reproduziram como fazem todos os povos e criaram uma aura de superioridade que poucos conseguiram e que muitos rebatem. E, como todas as auras são apenas auras, um dia um homem resolve mostrar para as pessoas daquele país invencível que um avião, ou três ou quatro, podem destruir um sonho.

Spike Lee nasceu nos Estados Unidos da América. E provavelmente tem orgulho disso. Como François Truffaut deveria ter orgulho da França, Takeshi Kitano deve ter orgulho do Japão e você deve ter orgulho do Brasil. Não é errado ter orgulho do país em que se nasceu. Mas é preciso ter uma coisa chamada parcimônia. Spike Lee nunca colocou sua origem espacial como questão central dos filmes que faz, mas sim sua raça, sua cor. Seus filmes, sempre muito bem elaborados e conscientizados, ganharam o mundo levantando a voz contra o racismo e a diferença de uma maneira geral. O tom, não raro, panfletário de seu discurso algumas vezes prejudicava sua mensagem, mas Lee assinou seu nome na lista dos grandes cineastas dos útimos anos. Mas de um tempo para cá, viu que poderia discutir temas com abragência muito maior. Temas muito mais universais.

No dia 11 de setembro de 2001, Spike Lee provavelmente ficou abalado. Não é fácil nem agradável ver dois aviões cheios de gente inocentes matando outros milhares de pessoas inocentes por qualquer causa que seja. Quem concorda com o assassinato porque qualquer motivo não merece respeito. Pelo menos o meu. Mas neste dia, Spike Lee e muitos outros norte-americanos – e muitos outros nova-iorquinos, sobretudo – começaram a questionar o país em que moram, o país em que cresceram e, mesmo discordando de tudo, o país que se acostumaram a ver como o maior país do mundo, o país da liberdade, o país do sonho. Martin Scorsese usou a desculpa de contar a história de Nova Iorque para dizer, pela boca do maior ator do mundo, que este mesmo mundo tem medo do país em que ele vive, em que ele mora, em que ele nasceu. Todd Haynes usou todas as cores bonitas do mundo para mostrar que o excesso de cor muitas vezes engana e esconde tons sombrios de um povo que se acostumou a uma concepção idealizada do que realmente é. Então, chegou a vez de Spike Lee.

Em 2002, Spike Lee foi o primeiro, ou um dos primeiros, a falar no cinema que as Torres Gêmeas caíram. Enquanto a poeira dos escombros de uma nação era recolhida para baixo de muitos tapetes, o cineasta resolveu fazer os espectadores de seu filme, que nunca são muitos, pensarem em como é absolutamente fake a idéia da reconstrução. Para isso, Spike Lee usou um artíficio antigo, mas, se usado com propriedade, muito eficiente, o da metáfora. Ele tomou para si um livro – e mais especificamente um personagem – para contar uma outra história americana. Edward Norton é os Estados Unidos. É a América. Uma tragédia acontece na sua vida e ela está prestes a escorrer pelo ralo. Na verdade, não há mais solução. Edward Norton se fodeu. A vida de mentira que ele construiu sobre bases inseguras, sobre colunas bambas, ruiu e ele se espatifou no chão. E percebeu como tudo estava tão errado e como era tão destruidor que o destino dele seria aquele mesmo. Como estava predestinado àquilo.

A Última Noite é um filme sobre reunir cacos. Sobre tentar se reerguer sem um terreno firme, sem material suficiente para apagar tudo e começar de novo. Sobre descarregar sua raiva no que se vê pela frente por querer ignorar que a culpa é sua. É sobre apontar a arma para todas as direções e nunca para você mesmo. Porque é errado se matar. Alguém já disse isso e muitos já fizeram. É errado se matar mesmo que você seja uma nação. Mesmo que você seja um povo inteiro. É muito melhor e muito mais fácil matar outras pessoas, outro que não seja você. E é muito mais fácil ainda brincar que nada existiu, arrumar uma nova vida, idealizar um novo começo, uma saída, uma solução. Imaginar que tudo pode ser diferente, que você pode olhar no espelho e enxergar uma barba bem feita em vez de um rosto destruído por socos, murros e pontapés. Spike Lee mostra isso e se retira para você chegar às suas próprias conclusões.

A Última Noite EstrelinhaEstrelinhaEstrelinhaEstrelinha
[25th Hour, Spike Lee, 2002]

Comentários

comentários

4 comentários sobre “A Última Noite”

  1. “Martin Scorsese usou a desculpa de contar a história de Nova Iorque para dizer, pela boca do maior ator do mundo, que este mesmo mundo tem medo do país em que ele vive, em que ele mora, em que ele nasceu.”

    a quem você se referiu como o maior ator do mundo?

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *