Adeus à Linguagem

Nos últimos 50 anos, Jean-Luc Godard se dedicou a desafiar a tradição. Tentou estabelecer em seus filmes uma linguagem essencialmente cinematográfica, afastando-se cada vez mais da narrativa literária clássica, que ainda contamina o cinema mais de um século depois de seu nascimento. Paralelamente, Godard encontrou bastante espaço para questionar. Questionou a arte, a política, a história. Em Adeus à Linguagem, seu trabalho mais recente, o cientista do cinema aprofunda sua busca e suas discussões, fazendo um uso praticamente inédito do 3D. E desconstrói o que ainda restava.

Não é o primeiro filme em que o cineasta se utiliza deste suporte. Ele já havia assinado um dos episódios de 3x3D, longa que chegou a encontrar espaço no circuito comercial brasileiro. Mas se naquele trabalho ele ainda parecia tatear nessa área, buscando intimidade com as potencialidades do recurso, em Adeus à Linguagem a plataforma é essencial para a proposta, quando não é a proposta em si. Até porque a sinopse é simples, como o próprio Godard garante (se quiser evitar spoilers, pule o próximo parágrafo, mas tenha certeza de que lê-lo não vai atrapalhar em nada a fruição do filme):

“A ideia é simples. Uma mulher casada conhece um homem solteiro. Eles amam, eles conversam, punhos ao vento. Um cachorro vaga entre a cidade e o campo. As estações passam. O homem e a mulher se encontram novamente. O cachorro se encontra no meio dos dois. Um está no outro. O outro está em um. E eles são 3. O ex-marido quebra tudo. Um segundo filme começa. Igual ao primeiro. E ainda não. Da raça humana, passamos a metáfora. Termina em latidos. E o choro de um bebê”. A história do filme, se é que se deve chamá-la assim, acontece nos intervalos das experimentações de Adeus à Linguagem.

Mas sinopse nenhuma conseguiu definir uma obra de Godard. E não seria agora. O que era recurso no filme anterior vira discurso no último trabalho e a provocação do diretor é mais incômoda do que nunca já que, desta vez, o incômodo que Godard sempre teve a intenção de provocar passa a ser físico. A experiência de assistir ao filme no cinema pode ser particularmente dolorosa, especialmente para quem precisa usar os óculos 3D em cima dos óculos 2D. Godard parece querer testar as fronteiras do cinema testando os limites da visão do espectador. Muitas cenas deixam a visão embaçada, em outras é preciso fechar um dos olhos para enxergar o que tem na tela e, em seguida, alternar o olho aberto. E há também aquelas em que os óculos são necessários.

Se de um lado, a utilização do 3D é completamente inovadora, de outro, o cineasta pode ter que pagar a conta de muitas consultas ao oftalmologista. E nem adianta assistir ao filme de outro modo porque esta, em 3D e no cinema, é provavelmente a única maneira correta de passar por esta experiência. O eterno combatente do cinema, que parecia estar cansado em alguns de seus últimos filmes, encontra na tecnologia fôlego novo para iniciar um debate sobre como ela, a tecnologia, comanda nossas percepções sobre o mundo de hoje. O brinquedo novo parece ter despertado no cineasta de 84 anos uma vontade imensa de recomeçar.

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[Adieu au Langage, Jean-Luc Godard, 2014]

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