Cães Errantes

O tempo em que as coisas se processam nos dias de hoje muitas vezes, na maioria delas, não permite que se enxergue muito além da primeira página. No cinema, por exemplo, as imagens são brutas e impactantes, a velocidade é acelerada, como se somente assim fosse possível retratar o mundo real, como se qualquer forma de expressão necessitasse desses parâmetros para dialogar com nossa época. Nesses tempos didáticos, a reflexão cada vez mais parece relegada a um plano utópico. As imagens se encerram em si, sem qualquer outro significado que não seu mais imediato. O espectador se acostumou a ignorar as entrelinhas até que as próprias entrelinhas começaram a ficar mais raras.

Em meio a tanto imediatismo, uma cena de Cães Errantes chama atenção. São dois planos fixos. No primeiro, um homem torpe e uma mulher emocionada, capturados por uma câmera estática, olham para algo que o espectador não consegue ver. Um incômodo angustiante numa época de imagens exatas. Não há movimento, a não ser o das expressões nos rostos dos personagens. São elas que denunciam sua perplexidade ao contemplar aquele mistério, que só desvendaremos 13 minutos depois, no plano seguinte, quando enxergamos o casal de costas diante de um imenso mural num prédio em ruínas, numa cena que ajuda a traduzir o espanto e a imobilidade do homem em frente ao mundo desmoronado que o filme retrata.

Tsai Ming-Liang preparou um desafio para aquele que ele mesmo anunciou como seu último longa-metragem. Ao mesmo tempo em que nos convida a refletir sobre a forma como a sociedade opera para com seus párias, aqueles que ela própria expulsa de seu mecanismo cotidiano e que viram um incômodo expurgo, o cineasta nos desafia a encontrar um novo tempo para administrar e ressignificar as imagens que vemos. Cães Errantes parece uma extensão e um desmoronamento do cinema que o diretor pratica há duas décadas: personagens que não se comunicam nem encontram mais seu lugar no mundo, agora inseridos numa estrutura desordenada que abandona o começo-meio-e-fim para chegar mais próximo do que oferece uma instalação, justamente a que o cineasta afirma que vai se dedicar a partir de agora.

O protagonista do filme é um homem que mora num prédio abandonado de Taipei, capital de Taiwan, com seus dois filhos. Enquanto ele ganha uns trocados como homem-sanduíche, fazendo propaganda com cartazes colados ao corpo, as crianças vagam pela cidade, perseguindo comida e alguma higiene. A cada cena, o diretor deixa seu vilão mais claro: o capitalismo que distorce valores e que espalha uma espécie de caos que o filme assume para si. Mais do que necessidades imediatas, a família persegue humanidade, algo que eles não conseguem mais achar no mundo ou em si mesmos. Uma busca etérea, difícil de colocar em imagens, o que o cineasta resolve em planos muito longos, quase fixos e sem movimento, que tornam mais palpável o vazio em que vivem os personagens e que desafiam o cinema narrativo.

Lee Kang-Sheng, parceiro de toda a vida de Ming-Liang, é novamente o protagonista e, mesmo reprisando características de seus personagens ao longo de duas décadas, nos entrega uma interpretação de extrema sensibilidade, cujo ápice é uma cena em que canta uma música sobre uma China que não existe mais para uma câmera fixa, que captura seu rosto em close. A letra melancólica, a melodia triste, a chuva incessante, o vento, o barulho do trânsito e as lágrimas do ator massacram o espectador. Sem deixar qualquer possibilidade de fuga, o cineasta direciona e doutrina nosso olhar e obriga quem assiste ao filme a invadir o sofrimento e o desencanto daquele homem. No meio de um retrato tão amargo quanto desesperançado de uma realidade, aquele devaneio musical é quase um bálsamo de humanismo, mesmo que não ofereça respostas ou saídas.

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[Jiao You, Tsai Ming-Liang, 2013]

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