César Deve Morrer

O poder transformador da representação está na proposta e por todos os lados do novo filme de Paolo e Vittorio Taviani. Fazia um bom tempo desde que os italianos, talvez os irmãos cineastas mais velhos em atividade, não assinavam um filme com tanto fôlego, tão cheio de vida, mesmo tratando de uma história de morte. César Deve Morrer começa pelo fim, com o encerramento da encenação de uma das mais famosas tragédias de William Shakespeare, para em seguida dedicar-se ao processo de criação. Os Taviani nos levam do palco colorido onde o espetáculo aconteceu para a realidade em preto-e-branco daqueles atores. Uma opção estética bastante convencional, mas que serve como suporte preciso para a natureza documental do que vem a seguir.

Os irmãos levaram suas câmeras até uma penitenciária de segurança máxima onde já existia uma espécie de rascunho de uma companhia teatral e propuseram ao diretor registrar a montagem que o grupo faria para Júlio César. Embora documentem cada detalhe do processo, desde a seleção dos atores até os ensaios e a apresentação final, os Taviani parecem mais interessados na transformação que eles mesmos sugeriram para alguns dos homens mais perigosos da Itália. Mais do que um respiro para seu cárcere cotidiano, a montagem da peça oferece aos presos a possibilidade de assumir papéis praticamente opostos aos que interpretam diariamente na chamada “vida real”. De criminosos, ele se transformam em juízes, assim como o presídio se transforma em palco, com cada parte do prédio assumindo o lugar de um cenário.

Nos testes de elenco, os crimes de cada um aparecem listados enquanto os candidatos se esforçam para conseguir seus papeis. Esse momento é fortíssimo porque ajuda a desestabilizar a atmosfera de condescendência que o teatro amador ajuda a desenhar. O espectador fica ciente do histórico de cada um daqueles homens à medida em que também vira juiz de seus talentos. A redistribuição de papéis não se limita unicamente a quem aparece na tela. É uma reconfiguração completa de significados. Desta forma, o espetáculo – ou muito mais o filme que o promove – não se resume a atores amadores conhecendo uma nova realidade ao interpretar um texto clássico. Os Taviani não promovem uma fuga, mas oferecem àqueles homens (e aos espectadores) a possibilidade de enxergar tudo o que está a sua volta, inclusive a si mesmos, com olhos menos viciados.

César Deve Morrer EstrelinhaEstrelinhaEstrelinha½
[Cesare Deve Morrire, Paolo & Vittorio Taviani, 2012]

Comentários

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2 comentários sobre “César Deve Morrer”

  1. Não vejo uma proposta de mostrar o “poder transformador da representação” no filme dos Taviani. Aliás, a última fala, “Depois de conhecer a arte, essa cela tornou-se uma prisão”, parece apontar para o outro lado. Se a descoberta da arte serviu para algo àqueles homens, foi talvez para gerar alguma angústia e algum arrependimento. Mas não creio que o nível de tal arrependimento poderia impossibilitá-los de cometer novos crimes.

    1. Mas o poder transformador de que eu falo não tem nada a ver com regeneração ou mudança de vida, mas com uma completa transformação no espaço cênico para eles enquanto atores.

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