Chico Xavier

O cinema brasileiro industrial parece se resumir a dois tipos de filme: as comédias populares e as biografias de grandes personalidades. Ambas com forte herança televisiva, metiê de onde retiram patrocínio para as produções e profissionais para dirigir e, sobretudo, compor seus elencos. Geralmente, esse produto importado da TV é visto com maus olhos, mas o que esperar de um país em que a televisão, independentemente do caminho que levou a isso, se tornou de fato uma indústria enquanto o cinema comercial se viu perdido sem o patrocínio do estado, brigou com o público e, somente nos últimos anos, começou a desenhar uma identidade própria? O Brasil sempre teve sua vanguarda cinematográfica, mas suas tentativas de fazer cinema para as massas (Atlântida, Vera Cruz) morreram em algum momento.

O fato é que, naturalmente, esse novo cinema industrial enxergou na televisão um modelo a copiar para, não apenas ganhar dinheiro, mas sobreviver. Desde a década de 90, com a entrada da Globo Filmes no mercado, o cinema ganhou e perdeu. Perdeu porque uma corporação poderosíssima como a Globo trouxe vários vícios consigo (temas de apelo popular, linguagem palatável, pouca ousadia temática e formal e, aquele que deve ser o maior pecado entre todos, um certo desrespeito pela diferença entre os meios. Boa televisão não necessariamente significa bom cinema. A Globo também trouxe – ou consolidou as carreiras cinematográficas de – muitos de seus criadores. Nomes como Guel Arraes, Jorge Furtado, Jayme Monjardim e Daniel Filho entraram ou voltaram ao cinema. Para o bem e para o mal da nossa produção.

O caso de Daniel Filho talvez seja o mais particular de todos eles. Diretor de novelas desde os anos 60, tinha poucas experiências com o cinema. A mais famosa foi O Cangaceiro Trapalhão, de 1983, um dos filmes mais interessantes do quarteto comandado por Didi Mocó. Voltou à cena cinematográfica apostando num texto de um dos mais populares autores globais, Miguel Falabella – A Partilha, de 2001 – apoiado por um elenco de estrelas televisivas e, desde então, se alternou entre comédias escrachadas, como Se Eu Fosse Você e filmes, digamos, mais sérios, como A Dona da História e O Primo Basílio. O resultado sempre foi razoável, à exceção talvez deste último, bem fraco.

O fato é que Daniel Filho, que já tem hoje respeitáveis 72 anos, resolveu que seu negócio era o cinema e abandonou de vez a televisão. O outro fato é que ele carrega consigo até hoje – e sem remorosos – seus mais de trinta anos de serviços prestados à TV. Uma bagagem considerável que se garante imenso sucesso popular, como no caso de Se Eu Fosse Você 2, também confinava seu cinema a uma eterna dependência do modelo, dos vícios e das características de uma outra mídia. E foi sabendo disso, cheio de certezas pré-estabelecidas, que eu fui assistir a Chico Xavier, a cinebiografia que Daniel dirigiu sobre o médium mais famoso a baixar neste país. Já imaginei que a procura seria grande, mas não imaginava que o filme fosse levar 590 mil espectadores para o cinema em um fim de semana. Dei sorte e consegui um ingresso de primeira.

A cena que abre o filme, a preparação de Chico Xavier para uma entrevista (que ficou famosa) num programa de TV, já dá indícios dos cuidados do diretor em mostrar que a) não seria reverente ao retratado, pecado mortal de nove entre dez cinebios feitas no Brasil, e b) sabe muito bem que cinema é cinema e tevê é tevê. O personagem de Tony Ramos, mesmo sendo real, serve como persona cinematográfica para Daniel Filho, que se declara ateu e lança ali suas incertezas sobre espiritualidade e afins. Este mesmo personagem, justamente um diretor de um programa de TV, serve também para que o cineasta brinque com a montagem de uma forma completamente cinematográfica, mesmo que, teoricamente, dentro dos mecanismos televisivos.

A entrevista serve de base para o roteiro de Marcos Bernstein, um dos autores de Central do Brasil, servindo de gancho para os flashbacks, em ordem cronológica, que contam a vida do médium. Embora Daniel Filho praticamente crie uma vinheta, incômoda, para a entrada dessas pequenas narrativas, o recurso funciona com correção e o que se vê é um modelo clássico de biografia que ganha respeito por sempre tratar a história com sobriedade, tentando deixar o personagem falar por si, sem defendê-lo ou muito menos reverenciá-lo, o que diminui o caráter oficialesco presente em filmes como Cazuza – O Tempo Não Pára, por exemplo.

As cenas da infância de Chico Xavier são, talvez, a parte mais bem resolvida do filme já que, apesar de já conterem muito do caráter espiritual da coisa toda, não dependem exclusivamente desse universo, o que deixa Daniel Filho fazer o trabalho de biógrafo de maneira simples e bem resolvida. O ator Matheus Costa foi uma escolha e tanto. O garoto, muito bem dirigido, consegue se manter intacto diante de tanta possibilidade de se render ao dramalhão. As cenas com maior potencial de se perder a mão, quando o garoto contracena com a mãe, vivida por Letícia Sabatella, são as melhores. A última, em especial, tem um movimento de câmera bonito, inteligente e essencialmente cinematográfico.

O Chico Xavier vivido por Ângelo Antônio talvez seja o mais delicado e, por isso mesmo, o que funcione menos dentro do filme. O ator está esforçado, embora às vezes escorregue no excesso de doçura, o que não chega a compremeter o resultado final, já que ele assume o personagem numa época em que seus “poderes” se manifestam mais evidentemente e quando ele se torna uma pessoa pública. A melhor cena desta fase é aquela em Chico exorciza um espírito do corpo da irmã. No entanto, é nesse momento em que surge a figura de Emmanuel, o guia espiritual do médium, e o maior senão do filme. O tom de sobriedade fica comprometido porque um papel-chave como este ganhou um ator limitado e um figurino óbvio, batido, que evoca uma Obi Wan Kenobi do reino dos céus.

Nelson Xavier, o Chico mais velho, merece todas as piadas sobre sua interpretação “quase espírita” do personagem. Difícil pensar num ator mais perfeito para o papel. Nelson parece ter estudado profundamente o tom de voz, os gestos e movimentos de Chico e os reproduz sem que isso pareça cópia ou imitação. Sempre bastante seguro, garante credibilidade para todo o projeto, que é, sem dúvida, um projeto bastante feliz em tratar de um tema tão delicado, a crença, sem determinismos ou oportunismos, mas com uma consciência absoluta de que se está fazendo cinemão, cinema industrial de qualidade. Parece que Daniel Filho foi o primeiro a chegar realmente lá.

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[Chico Xavier, Daniel Filho, 2010]

Comentários

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24 comentários sobre “Chico Xavier”

  1. Ainda não tive a oportunidade de conferir o filme, por isso deixo o seu texto para depois. No entanto, o Marcelo Janot disse que, com “Bezerra de Menezes” e este “Chico Xavier”, uma onda de filmes espíritas se inicia no cinema brasileira. O que tu acha?

    Abraços!

  2. Concordo de Emmanuel poderia ser melhor trabalhado, assim como a trilha sonora. Também gostei muito do filme e acho que passa a mensagem de Chico sem ser panfletário. Òtimo resgate histórico de Daniel Filho e o cinema/ televisão brasileira.

    Henrique, ali está um recorte, e a escolha foi exatamente falar do fenômeno mediúnico, “quem acredita”, “quem não acredita”, “momentos em que pareceu ser inquestionável”, ele assumiu o ponto de vista de que era verdade. E não é tão panfletário quanto vc fala: no caso dos jornalista, Chico também é ridicularizado, apenas mostra que Emmanuel sabia a verdade, são fatos reais, a personagem de Cininha de Paula também não é uma louca, apenas diz que não acredita naquelas baboseiras. Ah, e eles ainda tocam no tema da “peruca” que sempre foi motivo de ridicularização de sua figura … Fala de espiritismo sim, pois fala de caridade, amor ao próximo e continuidade da vida. Não precisava ser doutrinário.

  3. Agora sei que espiritismo é o maior engano do mundo ,tudo que Alan Kardec falou em seus livros é mentira ,espero que vocês não entrem neste engano.

    1. Baseado em quê, vc afirma isso? Os trabalhos de Allan Kardec são, basicamente, de natureza científica (veja-se O Livro dos Médiuns). Além de que Kardec insistia numa “fé raciocionada” em oposição à “fé cega”. Sem contar que o mote dos estudos de Kardec é que “tudo tem uma causa”, que pode até ser desconhecida de nós, por enquanto. Kardec fala que certos fatos não podem ser explicados porque a Ciência que hoje conhecemos ainda não é suficiente para dar as decidas explicações.

  4. gostei muito do filme sempre ouvi falar
    da bondade de chico e se ele fosse catolico com certeza o Papa já o teria
    feito santo.
    pra mim ele foi um ser humano maguinifico

  5. Agora lendo a resenha concordo que a figura de Emmanuel poderia ser melhor trabalhada. Quando assisti ao filme não havia percebido essa vulnerabilidade.

    Com relação ao trabalho de Daniel Filho acredito que cumpriu de forma excelente a “missão”, principalmente se levarmos em conta a dificuldade em transpor para tela um tema tão delicado e um personagem tão diferenciado.

    As interpretações dos 3 Chicos estão acima da média, inclusive o garoto.

    Enfim, gostei do que vi, sinceramente esperava muito mesnos…

  6. Henrique, entendo o que vc quer dizer, mas não senti isso na minha sessão. Enfim…

    Anônimo, vc está certíssimo. isso é o que dá confiar no IMDB. Obrigado.

  7. Prezado Chico, somente a título de informação, ao contrário do que seu texto informa, antes de O Cangaceiro Trapalhão (1983), Daniel Filho havia dirigido no cinema: “Pobre Príncipe Encantado” (1969), “A Cama ao Alcance de Todos” (1969 – episódio),”O Casal” (1975) e um filme do qual não tenho muita referência: “O Impossível Acontece”.

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