Kill Bill: Vol. 1

Durante o hiato de mais de seis anos sem filmar, muito se comentou e se especulou sobre qual seria o próximo projeto de Quentin Tarantino. Até uma adaptação de Macbeth, de Shakespeare, estaria nos planos do mais importante cineasta surgido na década passada. Mas não foi o dramaturgo que inspirou o diretor no novo trabalho. Da obra do bardo, apenas a violência é ponto de encontro com o filme mais recente de Tarantino, que resolveu investigar ainda mais fundo os limites entre o cult e o kitsch e mergulhou numa salada de faroeste e kung fu.

E para contar sua história de vingança, o cineasta recrutou uma parceira de seu filme mais famoso. Uma Thurman. …cause everybody knows she’s a femme fatale…. Sem desmerecer o resto do elenco, é dela boa parte do crédito pelo esplendor visual do filme. Uma mulher linda, absolutamente deslumbrante. E que ainda faz aquilo tudo. “Aquilo”, por sinal, é parte do universo de todos os filmes de Tarantino, que – alguém já parou pra pensar? – só filma histórias de personagens do submundo. Mas que sabe deixar seus bandidos tão atraentes que quem vem vai contra eles é que é o verdadeiro vilão do filme.

Em Kill Bill: Vol. 1, as regras são as mesmas que Tarantino já deixou claras desde 92: referências da cultura pop (entenda como quiser ou não entenda), edição esfacelada (o que sempre funciona bem em seus filmes, mas vira virtuosismo em muitos filhotes), violência (ainda que estilizada) e muito humor e sarcasmo. O equilíbrio entre o escracho e a seriedade é tênue, mas nunca passa do ponto, um dos maiores trunfos do filme que guarda uma diferença de seus irmãos mais velhos: o abandono da verborragia.

Um dos grandes senões do cinema de Tarantino era a necessidade quase que primordial de mostrar suas referências. Os diálogos cheios de citações, com muitas brincadeiras com música, cinema, literatura e o mundo contemporâneo funcionaram durante muito tempo, mas ficaram desgastadas com o tempo e caíram em desuso. O cineasta, muito esperto, se deu conta disso e fala menos do seu novo filme. As referências culturais deixaram o plano da palavra e ganharam forma. Tarantino agora mostra mais do que diz. As imagens contam tudo, fazem as brincadeiras, provocam o espectador. Esta talvez a prova mais concreta de que o cineasta evoluiu. Materializar intenções não é fácil. Um pecado de muito diretor por aí, cheio de boas idéias que conseguem se solidificar.

Sally Menke, a grande montadora dos anos 90, reprisa sua fórmula de rearranjamento de tempo criando curiosos enlaces, mas como filme foi dividido em dois, o processo não parece concluído e a justificativa para desconstruir a narrativa não se mostra suficiente. Único ponto realmente questionável. A estilização estética está cada vez maior. A direção de arte é a melhor já vista num filme de Tarantino. Aqui, mais que adereço, ela é signo. Dá inclusive para se fazer um paralelo entre a evolução visual do cinema de Tarantino com o de Almodóvar. Enquanto espanhol estilizou seus filmes ao ponto de se despedir do brega e adotar um kitsch blasé, Tarantino passou a se preocupar mais com o que mostrar e deixou seu filme mais bonito.

Mas o grande elemento de destaque em Kill Bill: Vol. 1 é a direção de fotografia. Trocar Andrzej Sekula e Guillermo Navarro, dos filmes anteriores, pelo competentíssimo Robert Richardson foi um presente que proporciona um espetáculo visual absolutamente delicioso de assistir. Isso fica claro na cena em que a personagem de Uma Thurman tem que enfrentar um bando de dezenas de mafiosos japoneses mascarados de Besouro Verde. Richardson retira a cor e depois a devolve, retira a luz e depois a devolve, e abre um painel de inverno que provoca êxtase visual. Neste momento, a introdução de Don’t Let Me Be Misunderstood, do Santa Esmeralda, é a inesperada trilha sonora.

 

No entanto, apesar de sua excelência técnica, Kill Bill conquista pelo que sempre fascina nos filmes de Tarantino: os detalhes e a costura. Da cena de abertura, ao som de Nancy Sinatra à aparição de Daryl Hannah (a estrela reloaded da vez) numa seqüência já antológica. E há Chiaki Kuriyama, que desenvolve sua Gogo como uma personagem extremamente sedutora. Mas a parte que me deixou arrepiado mesmo foi a solução encontrada para apresentar a origem da personagem de Lucy Liu. Para um fã de quadrinhos e desenhos, ver a história ser contada em anime foi algo devastador de tão inesperado, que remeteu guardadas as proporções ao livro Gen, de Keiji Nakazawa.

É, é bom sim. Muito bom. A vingança pode ser um prato delicioso se o molho por preparado pelo cineasta certo.

Kill Bill – Vol. 1 *****
[Kill Bill: Vol. 1, Quentin Tarantino, 2003]

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