Últimos Dias

O som, de uma maneira geral, é um aspecto secundário na obra de maioria dos cineastas. Serve muitas vezes apenas para dar voz aos personagens ou fazer barulho em cenas de ação. Pouquíssimos entendem a sonoplastia como signo, como plataforma de linguagem. Gus Van Sant é um dos raros diretores que elevam o som à condição de ator principal e não figurante perdido na multidão. Em Elefante, o desenho sonoro é essencial para que Van Sant explique sua visão de mundo: para ele, somos a intersecção de interferências que surgem de todos os lados. Elas nos definem, nos confudem, nos confinam e nos libertam.

Já em Últimos Dias, um filme a que eu resisti inexplicavelmente durante anos, Van Sant usa o som com um objetivo diferente, mas igualmente importante para a trama. O filme, inspirado no momentos finais da vida de Kurt Cobain, líder do Nirvana, retrata um protagonista confuso, que vaga em busca de um propósito. Para isso, o cineasta trabalha em dois planos. O primeiro é a imagem, com a câmera de Harris Savides como reflexo da falta de foco e dos movimentos circulares do personagem. O segundo e talvez mais importante é a sonoplastia.

Blake, o Kurt de Van Sant, é um homem engolido pelo mundo que o cerca. Um artista de enorme potencial criativo que se vê podado por obrigações com sua banda, seus contratos, sua família. Sua voz sumiu diante de tudo isso. E Van Sant traduz isso literalmente. O protagonista de Últimos Dias raramente fala – e quando o faz nós mal o ouvimos, mesmo que ele esteja num diálogo direto com a executiva de estúdio interpretada pela Kim Gordon do Sonic Youth. Muitas vezes só sabemos que Blake está falando porque há legendas para nos informar disso.

A experiência, confesso, não é fácil. Em sua tentativa de naturalismo, Van Sant constrói uma narrativa lenta, que exige bastante atenção e disposição do espectador. A voz do protagonista desaparece diante das vozes dos outros, de ruídos cotidianos e, sobretudo, diante da música. Essa última situação é o único momento em que Blake ainda se mantém intacto. Quando ele canta, informa para o mundo que ainda está vivo. O que resta, então, quando ele só consegue cantar quando está só? Para Gus Van Sant, numa das cenas mais lindas do cinema feito na década passada, talvez seja a hora de ele subir as escadas e se recolher.

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[Last Days, Gus Van Sant, 2005]

P.S.: o clipe da música “Happy Song”, do Pagoda, extra do DVD de Últimos Dias, está no novo canal do Filmes do Chico, no YouTube.

Comentários

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6 comentários sobre “Últimos Dias”

  1. Sou muito fã do trabalho do Gus Van Sant, vou ver um filme dele sem nem saber do que se trata e este filme achei intragável. Pra mim o problema está no protagonista, não consigo achar aquele menino mais que nada.

  2. Crie coragem, Vinícius.

    Eu não sei bem porque resisti tanto. Deveria ter visto no Festival do Rio, mas as sessões estavam lotadas. Abriram uma extra, comprei o ingresso, mas cancelaram logo depois. Aí tentei na Mostra, mas perdi pelo mesmo motivo. Como não estreou no cinema, ganhou o status de “filme de DVD” pra mim e eu fui deixando. Comprei o DVD há mais de um ano, ensaiei ver várias vezes, mas só fui assistir agora.

    E isso porque “Elefante” está no top 10 da minha vida.

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