Gosto dos Outros: Sérgio Alpendre
“meus 10 mais (ou alguns filmes que me deixaram com a perna bamba)”
1 Faces (idem, 1968), de John Cassavetes.
O inacreditável humano. Suas inseguranças, suas dúvidas. Sua incapacidade de ser totalmente autêntico, bem como de ser totalmente esquivo e dissimulado. A vulnerabilidade como trunfo, o olhar como sinal de respeito ou interrogação, como tentativa de aceitar o melhor e o pior de cada pessoa. A dificuldade de diálogo, a necessidade de se mostrar atento às fraquezas do outro. Poucos filmes falam tanto sendo tão incompletos. Toda a beleza da vida parece estar em cada fotograma de Faces, um filme imensurável.
2 Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950), de Billy Wilder.
Wilder no auge de seu cinismo crítico. E aqui o alvo é a mesma Hollywood que o projetou. Mas também, a dependência de uma pessoa à outra. Os caminhos que levam a essa insegurança, que às vezes disfarça-se numa sensação de onipotência enganosa, pois tudo pode ruir em alguns segundos. Gloria Swanson se dirigindo à câmera continua sendo uma das cenas mais acachapantes do cinema.
3 O Anjo Exterminador (El Angel Exterminador, 1962), de Luis Buñuel.
De cara, uma das obras mais desconcertantes que vi. Buñuel mandando o bom senso às favas. Depois do choque, impressiona o trabalho formal do filme, com enquadramentos absolutamente geniais (sem querer sê-los), e movimentos discretos e reveladores de câmera.
4 Dois Destinos (Cronaca Familiare, 1962), de Valerio Zurlini.
Encontros e desencontros em sépia, cortesia do mágico Giuseppe Rotunno. Zurlini sensibiliza mostrando o que mantém um ser humano ligado a outro. Mastroianni brilha como o homem que recebe a notícia de que seu irmão está à beira da morte. Cenas de seu passado com ele e a avó invadem sua mente, enquanto ele mesmo, em seu íntimo, luta para tocar a vida. Se o choro não vem durante a projeção, certamente virá quando Mastroianni disser: “prefiro lembrar de você com saúde”.
5 O Leopardo (Il Gattopardo, 1963), de Luchino Visconti.
A decadência da aristocracia com a riqueza de detalhes típica de Visconti. Como o filme já foi comentado pelo Peerre, mudo o foco para o grande Giuseppe Rotunno (de novo), talvez o melhor diretor de fotografia de todos os tempos. Há beleza, sim, em seus trabalhos. Por vezes uma beleza quase hipnotizante. Mas nunca deslocada, nunca deixando de contribuir para o filme. Ele consegue ser barroco e funcional ao mesmo tempo. O cinegrafista perfeito para um filme como O Leopardo. Onde há suor e brilho, sedas e poeiras. O mais belo e o mais podre.
6 Bunny Lake is Missing (1965), de Otto Preminger.
O desejo de entender o seu tempo, de não ser atropelado pelos sentimentos. Ao mesmo tempo, uma exploração das possibilidades do cinemascope (como, aliás, vários filmes de Preminger). A participação dos Zombies, tocando num aparelho de tv de um pub, e observados com interesse por Laurence Olivier, diz muito sobre a operação realizada pelo filme. Se o rock estava perdendo, definitivamente, sua inocência, nós espectadores somos colocados num clima misterioso, onde o que é ou não real está encoberto pelas mudanças cada vez mais apressadas da sociedade. Filme datado, e ao mesmo tempo, apropriado a qualquer época.
7 Roleta Chinesa (Chinesisches Roulette, 1976), de Rainer Werner Fassbinder.
Talvez o melhor registro sobre jogos de olhares de que tenho notícia. O olhar como arma e como maneira de se desnudar. Um jogo cruel e fascinante proposto por Fassbinder, observador perspicaz da natureza humana. Ele consegue ficar a um passo do abominável, do abjeto, e sair ileso, no alto de sua habilidade como encenador. O filme ainda tem o melhor trabalho musical de Peer Raben no cinema.
8 Fellini Oito e Meio (Fellini Otto e Mezzo, 1963), de Federico Fellini.
As fronteiras do plano real com o onírico são definitivamente rompidas nesta obra-prima sobre a criação artística. Com este filme, Fellini iniciaria uma nova fase em sua obra. Foram-se os painéis sociais, chegam os dilemas mais profundos da mente humana (por extensão aos da mente dele próprio). Não deixa de ser um painel, claro. É o estilo do diretor. Mas é um painel intimista, auto-centrado, o que desagradaria muitos críticos daí pra frente. Recusar a deliciosa loucura visual e sensorial de seu cinema me parece, no entanto, sinal de miopia e desconcentração.
9 A Esposa Solitária (Charulata, 1964), de Satyajit Ray.
Entre Renoir e Visconti, as influências confessas do diretor, dá pra perceber um mundo pessoal e extremamente criativo no cinema de Ray. Em Charulata, momento inacreditável de poesia cinematográfica, Ray consegue o absurdo de fazer com que a câmera balance com a esposa, pule com o primo, congele com uma reconciliação. Tudo isso sem ser, em momento algum, piegas ou infame. De um diretor que consegue filmar com perfeição a inspiração de um poema se pode esperar o melhor.
10 Vale Abrãao (idem, 1993), de Manoel de Oliveira.
A única adaptação bem-sucedida de Madame Bovary é, de fato, uma das maiores obras do cinema pela habilidade de Manoel de Oliveira em evitar o que o romance de Flaubert tem de infilmável, optando por um tratamento crítico, questionador, que guarda muito pouca semelhança com as outras adaptações. Existem críticos que dizem que o pouco que há de Flaubert no filme vem da piada final, visual e inenarrável. Talvez. Como vi o filme apenas uma vez, mal conseguindo andar após a sessão, aguardo a revisão na próxima Mostra de Cinema de São Paulo, onde foi prometida uma retrospectiva bem abrangente do mestre.
Menções honrosas necessárias a outros filmes da minha vida:
Cassino (Martin Scorsese), Pierrot le Fou (Godard), O Testamento do Dr. Mabuse (Fritz Lang), Rastros de Ódio (John Ford), À Sombra de uma Dúvida (Hitchcock), O Sétimo Selo (Bergman), O Ano Passado em Marienbad (Resnais), Recordações da Casa Amarela (João Cesar Monteiro), Harakiri (Kobayashi), O Rio dos Vagalumes (Sugawa).
microentrevista
Por que ter um blogue de cinema?
No meu caso para praticar a escrita mesmo. Além da oportunidade de fazer novos amigos (por incrível que pareça, a maior parte dos leitores do blogue, participantes ou não), gosto da possibilidade de tentar escrever no menor tempo possível o que penso sobre um filme ou diretor. Às vezes sou leviano, mas é o preço a pagar pela informalidadee pela pressa.
Qual seu cineasta infalível?
Tem tantos, mas o que engatou a maior sequência de grandes filmes nos últimos tempos foi Manoel de Oliveira.
Vale tudo para ver um filme (cópia pirata, filme no computador,
versão sem legendas ou de má qualidade, etc.)?
Eu não gosto de ver filmes em condições precárias. Tenho cópias péssimas de filmes que quis ver a vida inteira (ex: A Mamãe e a Puta, de Jean Eustache), mas fico sempre com preguiça de ver, aguardando uma cópia melhor. Da mesma forma que detesto ver filmes com formato errado (pan scan no lugar de widescreen, ou outras deformações).
Texto, câmera, interpretações, montagem. Qual seu primeiro interesse num filme?
A câmera, seguida de muito perto pela montagem. Posicionamento e movimento (ou não) de câmera é muito importante para a apreensão do filme. E a maneira que o diretor encontra pra passar de um plano para outro sempre atrai minha atenção. O corte certo é essencial.
Quem tem o melhor texto sobre cinema?
No Brasil continua sendo o Inácio Araújo, com alguns colegas da Contracampo correndo por fora. Lá fora, Kent Jones e Chris Fujiwara. Gosto muito do pouco que li do Serge Kaganski também.
Sérgio Alpendre, 36 anos, louco por filmes desde a primeira infância, mas cinéfilo que se preze desde 1990, quando descobriu O Anjo Exterminador, de Buñuel. Escreve para a Contracampo, e iniciou em 2004 o blogue Chip Hazard.