Baixio das Bestas

No entendimento de mundo limitado que Cláudio Assis parece ter, Baixio das Bestas deve ocupar um lugar importante. É, feitas as devidas concessões, um filme-denúncia. Diretor e roteirista parecem querer tornar pública a situação de extrema miséria da zona da mata pernambucana, ou nordestina, que, na visão deles, favorece mesquinhezas e maldades de seus moradores. Numa avaliação mais ampla, o filme tem a urgência de expor a capacidade do ser humano de praticar o mal.

Praticamente não há evolução em relação ao primeiro longa do diretor, Amarelo Manga, do qual a diferença máxima que se guarda é a transferência da ação da zona urbana para o campo. Nos filmes de Assis, a maldade se torna inerente ao homem por causa de sua condição de produto do meio. É onde ele vive que determina o que ele vai ser. Essa lógica me parece bastante próxima de filmes abomináveis como Crash, de Paul Haggis, ou Babel, de Alejandro Gonzalez Iñarritu, que lidam com ela de forma mais simplista porém menos ingênua.

Essa parece ser a principal fraqueza do cinema de Assis, a ingenuidade de sua compreensão do mundo. Ao contrário de seus primos tortos norte-americanos, Baixio das Bestas parece ser muito honesto em relação a sua concepção do homem. Assis e Hilton Lacerda realmente devem acreditar no que mostram, ou seja, defendem um mundo simplista, com relações simplistas entre os homens, com uma visão simplista dos mecanismos que regulam nossas vidas em que tudo é preenchido pela perversidade, seja a falta do que fazer, seja a falta de não ter nada para fazer.

E a forma de comunicação que Assis encontra – e que domina – é a do escândalo. Então, palavrões, nus, masturbação, de maneiras de expressão a princípio genuínas passam para estratégias de venda do filme como produto bruto de crítica social. Entenda-se como bruto, verdadeiro, corajoso, sem concessões. No entanto, o que mais fica desse conceito é a estratégia de venda. É vergonhoso que, num momento iluminado – jamais visto em tamanha quantidade – da produção do cinema nordestino, se tenha que dar de cara como produtos tão primários.

Assis se contrapõe de forma contundente ao cinema elaborado feito por Marcelo Gomes, Sérgio Machado e Karim Aïnouz, e perde feio até para um tipo de filme mais popular executado por Lírio Ferreira. O cinema “sujo” de Assis parece herdeiro de panfletos universitários, da compreensão mais básica das aulas de sociologia e filosofia, do encantamento inicial com Marx e todos os pensadores esquerdistas. Assim, ainda que pareça mais genuíno do que estes, seus filmes se aproximam das lógicas dos longas de Sérgio Bianchi ou Alexandre Stockler.

O curioso é que, embora Assis tenha essas intenções pueris de denúncia, ele parece ter um dominío bastante considerável da forma. Seu filme é bem dirigido, bonito e toda sua concepção técnica é muito eficiente. No entanto, a fotografia de Walter Carvalho, admirável, briga o tempo inteiro com os propósitos do filme, de ser sujo, bruto, cruel.

Ate hoje, a melhor coisa que Cláudio Assis fez, na minha opinião, é sua participação, como ator, num filme elogiado do qual eu não gosto muito: Crime Delicado, de Beto Brant. Sua cena é brilhante. Da mesma maneira, ele tem mão boa para dirigir atores: Caio Blat, Fernando Teixeira, Dira Paes e Mariah Teixeira estão bem no filme, embora às vezes não recebam textos muito favoráveis. Um incômodo é o alter ego que Assis insiste em impor. Matheus Natchergaele, cada vez mais cheio de maneirismos e repetitivo, assume o papel e ganha algumas cenas vergonhosas. Essa falta de equilíbrio é outro grande problema. Cláudio Assis parece ter muito na mão, mas precisa crescer para fazer cinema de adulto.

Baixio das Bestas EstrelinhaEstrelinha
[Baixio das Bestas, Cláudio Assis, 2007]

Comentários

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16 comentários sobre “Baixio das Bestas”

  1. Sabe mais, Samuel? O pior de tudo nesse tipo de filme praticado pelo Assis, e, guardando as devidas proporções, pelo Bianchi, é que quem não gosta dele(s) pode ser classificado como alguém que se rendeu ao sistema, sem consciência crítica. Como se ele(s) fosse(m) exemplo(s) de quem tem.

    Entra tudo no pacote, Tiago. Eu fico assustado com a velocidade que o cinema do Haggis ganha ecos.

  2. Concordo plenamente com as comparações feitas no parágrafo acima, mas dá pra acreditar que meu professor de literatura brasileira (que também dá aulas de sociologia) recomendou, com muito êxtase, “Quanto Vale ou É por Quilo?”? Haha bizarro… Ele devia ler este texto.

  3. “Assis se contrapõe de forma contundente ao cinema elaborado feito por Marcelo Gomes, Sérgio Machado e Karim Aïnouz, e perde feio até para um tipo de filme mais popular executado por Lírio Ferreira. O cinema “sujo” de Assis parece herdeiro de panfletos universitários, da compreensão mais básica das aulas de sociologia e filosofia, do encantamento inicial com Marx e todos os pensadores esquerdistas. Assim, ainda que pareça mais genuíno do que estes, seus filmes se aproximam das lógicas dos longas de Sérgio Bianchi ou Alexandre Stockler. “

    Concordo totalmente. Como reflexo do Assis, o filme praticamente não filtra nada.

  4. esse filme foi um dos poucos que conseguiram a façanha de me fazer sair da sessão antes do final. abominável por essa coisa simplista (a cena do ‘pau no cu’ resume perfeitamente o teu incômodo com o filme) e essa coisa da fotografia, da câmera bem colocada, isso não salva o filme em nenhum instante.

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