[com quilos de spoilers]
O novo filme do turco Nuri Bilge Ceylan, do belo Era Uma Vez na Anatólia, é rodado em seu país natal, mas poderia muito bem ser uma alegoria da situação política no Brasil, em tempos de disputas ideológicas tão extremas. O protagonista de Winter Sleep é um homem rico, culto, ilustrado, um ator aposentado que escreve colunas semanais para revistas, analisando temas amplos e complexos como religião, tristeza, o comportamento humano, a própria vida. Aydin não trabalha mais com arte, ganha a vida com o hotel onde mora e recebe hóspedes de todo o mundo e com os aluguéis de várias casas que herdou do pai na Capadócia, região da Turquia, o que garante um cenário único para o filme de Ceylan.
A condição confortável da personagem não o impede de explorar as pessoas pobres que moram em suas propriedades. Mas essa exploração é terceirizada por Aydin. Ele deixa com que seus correligionários cuidem das cobranças da maneira como acharem melhor. O método que eles utilizam para isso não necessariamente seria culpa dele, acredita. Esta é uma postura de vida para a personagem. Tudo o que lhe parece desconfortável é passado para terceiros, menos sua hipocrisia. Se se utiliza de seus preceitos (como “não dê o peixe; ensine a pescar”), preceitos que considera infalíveis para não conceder anistia ou algo que o valha para seus inquilinos devedores, Aydin se sente particularmente tocado quando uma fã de suas colunas escreve para ele para pedir ajuda financeira para um trabalho social. Caridade nunca foi seu forte. Aydin sempre ignorou o trabalho voluntário que a mulher, Nihal, faz há anos. Mas, desta vez, por algum motivo, parecia diferente.
Quando foi confrontado com essa idiossincrasia, Aydin corre atrás do altruísmo perdido. Ele oferece seu dinheiro para doações, ele oferece comida para o professor que vai fazer uma viagem de moto. Tenta até o último recurso buscar algo que o faça acreditar em suas boas intenções. Intenções que até então deveriam estar escondidas lá no fundo de seu coração. Quando a mulher – cujo trabalho social se tornou uma maneira para se sentir viva, indivíduo -, reclama de suas intervenções, o protagonista do filme se arma com um discurso bem articulado, em que se utiliza de toda sua formação e capacidade de oratória para deixá-la sem argumentos e “convencê-la” (ou convencer a si mesmo de que a convenceu) de que ele – e apenas ele – pode organizar o trabalho que ela já coordena há tanto tempo. Ganha no papo.
Essa arrogância de Aydin, que tenta puxar os projetos sociais da esposa para debaixo de suas asas, nos remete indiretamente a uma prática utilizada a rodo na campanha eleitoral do ano passado, aqui no Brasil. Reivindicar a autoria em cima dos frutos das conquistas alheias e reafirmar para si mesmo, no caso da personagem principal e de alguns personagens de nosso último pleito, sua suposta inclinação social, o que se cristaliza, em Winter Sleep, num longo e cruel diálogo do protagonista com sua irmã. Por princípio, o homem enfrenta quem tem opiniões contrárias às dele, seja sobre o mundo, seja sobre ele mesmo, como um inimigo a derrubar. E no automático. Para ele, é um “acinte” que alguém não reconheça que ele está certo. Para Aydin, o fundamental é ser manter no controle. Ele nem sempre percebe, mas se enxerga como um astro com todo o resto girando ao seu redor. Seu discurso é de ódio ao que não concorda com ele. O paralelo imediato é com o eleitor brasileiro. De qualquer lado que ele esteja, mas especialmente do menos favorável.
Encerrado seu espetáculo, Aydin volta ao palco para um ato final. E em mais um golpe de seu altruísmo deformado, insinua pedir desculpas para depois revelar sua mais nova ficção. Nada de surpreendente para um homem que escreve sobre religião, mas nunca vai a uma mesquita; que disserta sobre a tristeza, mas não chorou no enterro do pai; que se apropria do trabalho alheio para remodelar sua própria história. O senão de tudo isso é que há um certo maniqueísmo na apresentação da personagem e maniqueísmo, como a gente bem sabe, é uma arma política usada a esmo para vender seu candidato e sua ideologia. Aydin pelo menos usa suas armas, ainda que elas sejam questionáveis. A gente só não sabe se, caso “estivesse eleito”, ele chamaria o batalhão de choque para retirar sangue de quem não concorda com ele.
Winter Sleep ½
[Kis Uykusu, Nuri Bilge Ceylan, 2014]