O discurso de ódio venceu no Brasil em 2018 e mexeu profundamente com relações que pareciam inquestionáveis. De repente, laços familiares ficaram em segundo plano quando um posicionamento político extremista, carregado de brutalidade, foi adotado por parte da população, deixando evidente a fragilidade destas conexões. Gabriel Martins enxerga esse Brasil e estas famílias divididas, mas se recusa a aceitar que tudo esteja perdido. Seu novo filme não apenas se propõe a falar sobre o homem comum, como tenta resgatar um tipo de humanismo que o cinema brasileiro recente muitas vezes rejeita.

Se “Marte Um” começa com uma citação ao resultado das últimas eleições presidenciais, indicando que abriria caminho para um debate político mais explícito, logo o filme se revela menos óbvio. Os protagonistas são são pai, mãe, filha e filho de uma família negra, pobre, periférica e absolutamente comum. Martins dedica tempo igual a cada um deles, recortando e equilibrando suas questões pessoais, seus dramas cotidianos e as relações entre aqueles personagens. As pistas de um discurso estão por todos os lados (a questão econômica permeia todo o filme), mas Martins quer mesmo é que o brasileiro se reconheça na tela, se recupere.

É uma decisão ousada numa época em que o cinema, e a arte como um todo, procura adotar uma postura mais combativa para que seu comentário fique mais evidente. O engajamento de Gabriel Martins, que aceita correr o risco de ser interpretado como alienado do momento social, acontece em formato completamente diferente, recuperando o interesse no humano, nos dilemas banais que nos fazem humanos e que ficaram soterrados pela guerra social. É uma batalha solitária, mas necessária.

Se pode ser associado ao cinema de afeto que, entre defensores e detratores, tenta oferecer um fôlego novo ao cinema autoral brasileiro, o novo longa de Gabriel Martins manifesta seu engajamento em outros aspectos: o elenco principal, todo negro, retrata o dia-a-dia de uma família negra, cujos dilemas morais e tramas particulares não passam por envolvimento com criminalidade ou experiência de preconceito, o que faz mais pelo debate do racismo do que pode parecer. Ao eleger esta família como recorte do Brasil, o filme normaliza esses personagens e traduz através deles um país que se perdeu.

Algumas vezes a realidade é tão impositiva que a única saída é olhar para cima. E “Marte Um”, que tem um personagem que sonha em ser astrofísico, remete a um dilema recente que virou título de filme no ano passado: “what do we see when we look at the sky?”. O que nós vemos quando olhamos pro céu? Vemos Deus e buscamos soluções em sua inteligência superior? Vemos a imensidão do cosmo e pensamos que aqueles outros planetas podem nos abrigar em tempos de incerteza? Vemos o sonho, a utopia ou simplesmente o futuro?

A cena em que Deivinho, temendo não ser levado a sério, conta para irmã o sonho que tem para seu futuro, além de ser uma das mais bonitas deste começo de ano, é bastante simbólica: Deivinho, para além do menino pobre que quer escapar do destino óbvio planejado pelo pai, representa de certa forma o Brasil, um Brasil menos estado, mais povo, mais gente, que cansou de uma situação de desconforto e quer ter um pouco de paz. Nem que seja na imensidão do espaço, conquistando um novo planeta, sonhando, mas com os pés num chão menos acidentado.

“Marte Um” fez sua estreia mundial no Festival de Sundance, em janeiro de 2022.

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