A mesma dor que machuca o peito de Lee todos os dias, todas as horas, é a razão pela qual ele ainda continua respirando. Faz muito tempo desde que aconteceu a maior tragédia da vida deste típico americano médio, homem simples, que cresceu por seus próprios méritos e talentos. Mas, por mais que todos em volta dele tenham reconstruído suas histórias esquecendo o passado, mirando nos próximos passos, Lee escolheu – aliás, se dedicou – ao luto. A estratégia não era apenas uma maneira de se despedir ou homenagear quem ele perdeu. E nem era somente um refúgio para esquecer e se curar. Lee precisava de mais. A dor se tornou não apenas a força motora na vida deste homem, mas prisão eterna para suas culpas, razão para sua existência.
O luto já foi retratado muitas vezes pelo cinema americano, mas poucas com a profundidade e a complexidade do texto de Kenneth Lonergan. O novaiorquino é essencialmente um dramaturgo, embora suas peças sempre tenham sido escritas para a tela grande. Em seu terceiro filme como diretor-roteirista, Lonergan visita uma cidade portuária de pouco mais e cinco mil habitantes, Manchester-by-the-Sea, em Massachussetts. É para lá, a cidade que tentou esquecer, que Lee tem que voltar porque precisa cuidar de seu sobrinho, que acabou de perder o pai. Joe morreu há pouco tempo e deixou a cargo de Lee a responsabilidade de tomar contra de Patrick. Num ato final generoso, o irmão que sai de cena oferece uma outra chance para o irmão que se auto-condenou.
Com uma delicadeza que nunca o impede de ser fiel ao devastador sentimento do protagonista, Lonergan desenha o caminho para a redenção, o reecontro entre duas pessoas que sempre se amaram e que, a partir de agora, só têm um a outro, e debate a escolha. O cineasta abre espaço, estende a mão, dá permissão para a mudança, mas, interessado em investigar os limites de uma dor, parece deixar a cargo do personagem principal a possibilidade de um recomeço. Lonergan entende que só Lee consegue medir o imenso vazio que sente, só cabe a ele abrir mão do luto que estranhamente o conforta e faz com que sua existência tenha algum sentido. “Aos outros eu devolvo a dó, eu tenho a minha dor”, o personagem parece gritar, em silêncio.
Além de Lee, Lonergan só aceita dividir a responsabilidade sobre o que está por vir com Casey Affleck. De intérprete mediano de voz irritante, Casey cresceu como ator. E aqui ficou imenso. Poucos defenderiam Lee com a paciência, a sutileza e a intensidade com que ele faz, um equilíbrio praticamente impossível, mas que parece fazer muito sentido para um homem que nasceu numa cidade um pouco maior, a menos de duas horas daquele cenário. É só por causa do encontro entre Affleck e Lonergan que começamos a entender a pertinência da dor. É a partir deste mesmo encontro que Manchester à Beira-Mar se estabelece como um dos grandes melodramas do cinema americano, uma obra implacável com quem está de qualquer lado da tela.
Machester à Beira-Mar ½
[Manchester by the Sea, Kenneth Lonergan, 2016]
O que caracteriza o filme como melodrama e não apenas como drama?
Ótimo crítica, Chico. Mas me tire uma dúvida: o que faz do filme um melodrama e não apenas um drama?
Abraço.
Oi Maicon, eu uso o termo ‘melodrama’ para classificar obras que tem a questão sentimental em primeiro plano. Gosto da palavra. Para mim, os grandes filmes dramáticos, que conseguem dar profundidade a suas histórias e personagens, são grandes melodramas.