Primeiro: não existe nada parecido com Arca Russa na história do cinema. Apenas isso já seria mérito suficiente para o filme, mas, mais que isso, Aleksandr Sokúrov cria uma obra importante, um desafio estético e conceitual ao marasmo criativo que se apossou não apenas do cinema norte-americano, mas dos filmes feitos no mundo inteiro. Um narrador em off que é o olho da câmera e que nunca vai ser visto pelo espectador. Um co-narrador que lembra uma mistura de Nosferatu com lorde europeu. Uma câmera que percorre um dos mais importantes museus do mundo, o Hermitage, na Rússia, numa viagem sem nenhum corte, possibilidade da filmagem digital. Uma aula de história e de cinema.
Arca Russa não é para todos. Por sinal, é para poucos. É um filme difícil, com fortíssimo, quase absoluto, tom documental, narrado de maneira lenta, lírica e até lúdica. Apesar do movimento se cristalizar na tela com o percurso do filme pelos corredores do museu, o filme não é ágil, o que deixou muita gente com sono. Perfeitamente entendível. A narrativa de Sokúrov é completamente alheia ao cinema universal. Gosta de passear sem pressa pelas imagens. Ainda mais quando o filme é um filme de imagens.
Sokúrov, aqui, passeia pelo museu e pela história. Mostra como a Rússia nunca conseguiu fazer parte de uma Europa imperial. Mostra como o país tentou construir sua história abduzindo a história e a arte de outros países. Viaja pela nostalgia do que nunca conseguiu ser, mostrando as obras que ocupam as paredes do Hermitage e mostrando os antigos personagens da família real russa. A idéia do conde que acompanha o narrador é fantástica. O ator é maravilhoso. Seu flerte com uma das mulheres que encontra pelo caminho é uma cena belíssima. O que se encontra pelos corredores do museu já enche os olhos para uma vida inteira. É arte pura. Falar da competência da direção de arte seria redundância. E Arca Russa é arte pura. É perfeição. Declaração de amor à imagem. Encontrar Catarina da Rússia em um corredor ou acompanhar um baile num dos majestosos salões do prédio do antigo castelo que agora dá lugar ao museu é uma experiência sem igual.
Arca Russa
[Russkij Kovcheg, Aleksandr Sokúrov, 2002]
Incrível que ninguém tenha comentado esse filme. Vi há mais de cinco anos, e há cenas que não me saem da memória. Este fica para sempre, coisa rara!