A história de um encontro

Quando o Nordeste chega ao cinema brasileiro, você já sabe bem o que vai encontrar: cangaceiros, miséria, fome e alguns elementos e personagens clássicos do folclore e da cultura da região, que deixam tudo mais palatável. Nordeste é sinônimo de sertão, de denúncia, de engajamento social. É bem triste ver como a pobreza da região se transforma numa absoluta pobreza temática. O sertão e suas mazelas são um buraco negro do qual ninguém é capaz de evitar. Nos últimos tempos, alguns cineastas nordestinos, que poucas vezes têm boas chances de fazer um longa-metragem e de ganhar uma boa distribuição no país, tentam mudar essa história.

Cláudio Assis, com toda sua arrogância primária, já tinha mudado o foco da denúncia ao se enveredar pela miséria da metrópole em Amarelo Manga (2003). Neste ano, Sérgio Machado deixou o denuncismo de lado para apostar num cinema urbano, factual, bem longe dos estereótipos caros ao homem nordestino no belo Cidade Baixa. No ainda inédito Árido Movie, Lírio Ferreira inverte o caminho do nordestino: sai da cidade grande para o sertão de hoje: sexy, marginal e maconheiro. Todos, de uma forma ou outra, negam uma espécie de tradição rústica do cinema nordestino. É – e não é – o caso do mais bem-sucedido deles.

A primeira vez que eu ouvi o título Cinema, Aspirina e Urubus, confesso que fiquei bastante desconfiado, mas bastam os primeiros dez minutos para saber que o longa de estréia do pernambucano Marcelo Gomes é um dos melhores filmes brasileiros dos últimos tempos. Primeiro, ao contrário de seus colegas, Marcelo não nega o sertão humilde, atrasado, exótico aos olhos de fora. A diferença é que o sertão não é personagem aqui. É cenário. Marcelo Gomes explora as particularidades com graça invejável, sem nunca espetacularizá-las, usando-as apenas como suporte para contar sua história. E fazia tempo que o cinema – brasileiro – não contava tão bem e de maneira tão simples uma história.

O encontro entre o alemão que fugiu da guerra para vender aspirinas no meio do Brasil com o nordestino que sonha em escapar da seca é um filme de personagens, que se baseia quase que exclusivamente no seu texto. Um filme de amigos, de parceiros, que tem o mérito – extraordinário no cinema brasileiro – de nunca querer chamar atenção para si mesmo. É a delicadeza do roteiro e as belas performances dos dois protagonistas que transformar Cinema, Aspirina e Urubus na pérola que ele é. O destaque é, obviamente, João Miguel, que dribla com majestade as armadilhas de uma personagem muito fácil de se gostar, o nordestino simpático e engraçadinho. Mas sua atuação só ganha a dimenssão que tem pela química acertada com Peter Ketnath.

Mas a direção delicada, o texto sutil e vigoroso e as interpretações cativantes ganham reforço de uma bela embalagem técnica, desde a fotografia assumidamente estourada à cuidadosa direção de arte, passando pela bela trilha. Tudo discreto e eficiente; moldura para um punhado de cenas bonitas: a guerra entre os protagonistas, a carona para a jovem expulsa de casa, o monólogo do nordestino solitário. Seqüências tão genuínas, tão despojadas que pedem por identificação. O maior mérito de Cinema, Aspirina e Urbubus talvez seja o quanto ele parece de verdade. Um filme bom todo.

Cinema, Aspirina e Urubus
Cinema, Aspirina e Urubus, Brasil, 2005.
Direção: Marcelo Gomes.
Roteiro: Marcelo Gomes, Paulo Caldas e Karim Aïnouz, inspirados em relato de viagem de Ranulpho Gomes.
Elenco: João Miguel, Peter Ketnath, Hermila Guedes, Oswaldo Mil, Irandhir, Fabiana Pirro, Verônica Cavalcanti, Daniela Câmera, Paula Francinete, Sandro Guerra, Madalena Accioly, Arílson Lopes, José Leite, Zezita Matos, Francisco Figueiredo, Mano Fialho, Lúcia do Acordeão, Jorge Clésio, Nanego Lira.
Fotografia: Mauro Pinheiro. Montagem: Karen Harley. Direção de Arte: Dedete Parente Costa. Música: Tomás Alves de Souza.
Figurinos: Beto Normal. Produção: Sara Silveira, Maria Ionescu e João Vieira Jr.. Site Oficial: Cinema, Aspirina e Urubus.Duração: 90 min.

nas picapes: Horizonte Distante, Los Hermanos.

Comentários

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14 comentários sobre “Cinema, Aspirina e Urubus”

  1. Oi Chico, tá sumido no msn hein.
    Aqui é o Shima.
    Estou adorando os eu blog, mas só resolvi comentar agora. Estou apaixonado pelo Peter Ketnath e pelo baiano João Miguel, que conheci na ocasião da est®éia do filme aqui no evento MOSTRAMUNDO, de cinema de Recife. Ano que vem quero muito ir para Sampa acompanhar o internacional de cinema…
    Cinema… para mim é o melhor filme brasileiro do Ano!
    Saudades, bora marcar aquela pizza! Um abração!

  2. Finalmente, Marfil? Acho que o Brasil já fez muito do que se orgulhar no cinema.

    Eu acho que nem cabe mais falar de retomada, já que a produção brasileira me parece estabilizada e com um número decente de lançamentos.

    Mas quanto a “Cinema, Aspirina e Urubus”, acho realmente um filmaço. Não sabia sobre o nova tecnologia não. Acho excelente. É uma bela, belíssima fotografia.

  3. Periga ser o melhor filme do ano…Tive oportunidade de conversar com Marcelo Gomes na Mostra SP, Ele está muito empolgado com a retomada do cinema no Brasil (embora reconheça que a distribuição ainda é precária) e com a recepção do seu filme…Também participei de um workshop sobre a fotografia utilizada no filme (Sobre o forte contraste e o branco superexposto). Trata-se de uma nova tecnologia desenvolvida no Brasil!!. Finalmente o Brasil pode orgulhar de seu cinema!

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