Nem todas as cores do mundo
Não senti a mínima vontade de rever Herói. Talvez por não gostar de ser enganado duas vezes. O filme de Zhang Yimou é uma grande mentira, uma involuntária metáfora da história que conta. Não parece haver uma outra razão aparente para que um cineasta do prestígio dele tenha resolvido fazer um filme como este senão o exibicionismo e uma vontade bem grande de ganhar dinheiro. Com sua aura de obra de arte, Herói é um caça-níqueis muito do fuleiro, que põe em cheque tudo o que diretor fez antes, apesar do esforço de Tony Leung e, principalmente, Maggie Cheung para dar credibilidade a seus personagens.
Primeiro ponto: a imagem. Cada mílimetro é calculado à exaustão para causar deslumbre visual. A manipulação das cores na direção de arte, acompanhando as múltiplas versões da história – não dava para pensar em nada mais original, não?, os efeitos visuais tão inerentemente absurdos que ganham sua explosão máxima na cena da luta sobre a água, a fotografia que ultrapassa o limite da beleza para abraçar forte a pieguice com muita câmera lenta, muito truque. O cálculo é tão extremado que o que poderia ser bonito se transforma em abstração de tão artificial.
Segundo ponto: a história. Para sustentar sua experiência visual, Zhang Yimou tentar embasá-la com uma trama apoiada em ciclos narrativos, cada qual com suas respectivas reviravoltas. Quem viu Rashomon (Akira Kurosawa, 1950) sabe bem de onde veio a inspiração. Mas não é nem esse plágio descarado o que mais incomoda, mas sim o que a reviravolta final nos revela: a identidade do tal herói. Além de falhar artisticamente, Herói tem uma grave falta moral: celebrar alguém que destruiu diferentes povos para inventar uma nação não parece nada muito acertado.
O êxito comercial do primeiro filme animou Zhang Yimou para uma nova incursão no gênero. O Clã das Adagas Voadoras, sem os mesmos tropeços morais de seu irmão mais velho, é bem melhor. Aqui o clima grandioso é trocado por uma história de amor clássica, bem mais simples, muito mais bem resolvida. Zhang Ziyi, coadjuvante no outro longa, agora é protagonista, a garota cega que desperta a paixão de dois soldados inimigos. Grande atriz, é dela muito do mérito do filme.
O foco na pequena trama é tão evidente que o diretor chega em certo ponto a abandonar o contexto histórico em que o filme acontece. A preocupação com o arrebatamento visual permanece em alta, mas aparece de forma mais discreta, reservada a cenas específicas (a dos tambores é particularmente belíssima). Não estilização, não há aura de filme de arte. Comparado a Herói, este O Clã das Adagas Voadoras é um grande filme, mas se o ponto de referência adotado for o pioneiro desta retomada das artes marciais, O Tigre e o Dragão (Ang Lee, 2000), o último trabalho de Zhang Yimou está apenas um pouco acima da média.
HERÓI
Ying Xiong, China/Hong Kong, 2002.
Direção: Zhang Yimou.
Roteiro: Li Feng, Wang Bin e Zhang Yimou.
Elenco: Jet Li, Tony Leung Chi-Wai, Maggie Cheung, Zhang Ziyi, Chen Daoming, Donnie Yen, Liu Zhong Yiuan, Zheng Tia Yong, Yan Qin, Chang Xiao Yang, Zhang Ya Kun, James Hong (voz).
Fotografia: Christopher Doyle. Direção de Arte: Huo Tingxiao. Montagem: Angie Lee, Vincent Lee e Ru Zhai. Música: Tan Dun. Figurinos: Emi Wada. Produção: William Kong e Zhang Yimou. Site Oficial: www.miramax.com/hero .
O CLÃ DAS ADAGAS VOADORAS
Shi Mian Mai Fu, China/Hong Kong, 2004.
Direção: Zhang Yimou.
Roteiro: Li Feng, Wang Bin e Zhang Yimou.
Elenco: Takeshi Kaneshiro, Zhang Ziyi, Andy Lau, Song Dandan.
Fotografia: Zhao Xiaoding. Direção de Arte: Huo Tingxiao. Montagem: Cheng Long. Música: Umebayashi Shigeru. Figurinos: Emi Wada. Produção: William Kong e Zhang Yimou. Site Oficial: www.sonyclassics.com/houseofflyingdaggers .
rodapé: no blogue da Liga, a pedidos, eu coloquei as notas de cada votante para os melhores de fevereiro. A lista de março já começou a ser feita.
A nova versão do Cine Imperfeito, do Francis Vogner, está muito bonita e bem rica de conteúdo.
nas picapes: Life on Mars?, de David Bowie.