Dono de uma filmografia extensa, riquíssima em títulos que ajudaram a fazer a história do cinema, Martin Scorsese gosta de espiar o homem americano. E não é de hoje. É através do homem americano que Scorsese solta sua voz sobre seu país, sobre o que pensa de seu povo. Daniel Day-Lewis, Ray Liotta e, principalmente, Robert De Niro já foram instrumentos para que o cineasta pudesse se fazer ouvir. Em O Aviador, Scorsese fala da América e do cinema, através de da figura de Howard Hughes, o milionário visionário que seria o protótipo do americano ideal: desbravador, determinado e, apesar das controvérsias, íntegro. Um modelo a seguir. Prato cheio para especular sobre os interesses em fazer uma biografia desta personagem.
Mas se Scorsese fosse um diretor cujos filmes não têm nuances, Gangues de Nova York, a punhalada do diretor no coração do seu país, não passaria de uma breve história de vingança. Há até quem veja o filme assim. Como há quem veja este novo longa como uma desesperada tentativa do diretor em finalmente por as mãos num Oscar. O Aviador, muito mais que uma superprodução, que um filme grande, é uma história particular, que somente ganha ares gigantes por causa de seu personagem. Um sonhador, um homem que buscava dar fim as utopias, que gastou fortunas para realizar seus delírios, para atingir o inatingível e alimentar sua megalomania.
Mas Hughes, de tantas vitórias, de caráter tão épico, era também um herói enérgico falível frente a inimigos invisíveis e microscópicos, que enxerga conspiração no cara da limpeza. Scorsese abusa da beleza dos planos quando o assunto é mostrar o retratado como o homem só, triste e doente que ele guardava para si. Todas as cenas na sala de projeção de Hughes são genialmente fotografadas. Planos que remetem a John Ford e Orson Welles, os maiores do cinema americano, dos quais Scorsese é herdeiro direto. O cineasta do deserto também é homenageado nas infinitas cenas em espaço aberto, seja no ar, seja em terra – firme para muitos, mas não para Howard Hughes.
O Aviador é suntuoso. Menos no dinheiro gasto nele, mais na excelência que toma forma na tela. Se o tom azulado incomoda (muito, às vezes), a maneira como Scorsese dispõe os acontecimentos que formataram a história de Hughes, reflexo da recente história da América, causam um certo incômodo necessário. O espetáculo cinematográfico tem seus momentos de afetação (como a interpretação de Cate Blanchett como Katharine Hepburn também os têm), mas também é o palco para um cineasta que sempre tem algo a dizer. E que desta vez escolheu Leonardo Di Caprio para falar por ele. Na sua magnífica performance, Di Caprio, o melhor ator deste ano, diz tudo. Diz que o céu é azul e que, mesmo que o inimigo esteja à volta, não é nada demais pegar o avião e dar uma voltinha.
O Aviador ½
[The Aviator, Martin Scorsese, 2004]