Cheguei em cima da hora. Não lembrava mais o caminho. Ele já estava nervoso, sentado numa daquelas mesinhas da entrada, fumando incessantemente. Entrei apressado e pedi desculpas. Disse-lhe que fazia tempo que não assistia a um filme na Cinemateca e não lembrava direito como chegar lá. Tinha andado um bocado. Ele sorriu e disse que entedia, meio impaciente. Fritz parecia bem, mas as marcas da idade faziam covas engraçadas no seu rosto. Os olhos, profundos e levemente apertados, ainda davam medo. Ele sempre teve cara de nazista, embora tivesse fugido da Alemanha pouco antes da guerra. O monóculo inseparável deixava-o com aspecto de general aposentado.
Conversamos um pouco e tomamos um café. Ele disse que hoje não via mais muita coisa interessante no cinema. Gostava de Tarantino, mas não de esperar pelo novo filme do “gênio”, disse sarcástico. Gostava de filmes inteligentes e simples. Foi uma conversa agradável. Falou que estava de olho numa vizinha vinte anos mais nova que morava em seu prédio e que achava George W. Bush um estúpido. Fritz sempre foi inteligente. Chegou a hora do filme. Ele disse que só iria assistir a um filme seu – no caso dois – porque eu fui muito insistente. Não gostava de ver coisas que poderiam ter sido mais bem acabadas, disse. Sorriu para a bilheteira, apagou o charuto e entrou comigo na sala de projeção.
Dr. Mabuse, o Jogador tinha um gosto estranho. Tinha trilha agora. Filme mudo com trilha fica estranho. E nem ele nem eu temos problema algum com a tecnologia. Por sinal, a tecnologia sempre foi instrumento de trabalho para o austríaco radicado na Alemanha e depois nos EUA. Seu filme mais famoso, Metrópolis (26), mergulha numa sociedade movida pela mais alta tecnologia, que em doses menores está presente em todos os seus filmes. Em Dr. Mabuse, o Jogador, ela se revela nos efeitos visuais da fotografia de Carl Hoffmann, que dão um quê místico ao thriller sobre o golpista das mil caras. Aqui, Fritz Lang invade a mente do espectador para deixá-lo tão alvo de seu protagonista quanto o mocinho do filme.
No filme, o cineasta retoma seu romance pela análise social da Alemanha, vista em obras como M – O Vampiro de Düsseldorff (31). Fritz disseca uma sociedade movida pelo vício. As drogas e o jogo comandam toda a narrativa, conduzida pelo realismo sarcástico do autor, mas com um pé na já citada espiritualidade. O Dr. Mabuse de Fritz Lang é um amálgama de todos os personagens vis que compunham a sociedade alemã da década de 20, mascarados pela maquiagem que permite que o homem dê seus golpes e manipule as mentes dos outros. As cenas onde Mabuse hipnotiza suas vítimas são assustadoramente bem feitas e surpreendentemente realistas.
Terminada a projeção, Fritz não deu nem uma palavra sobre o filme. Não vou comentar, já havia dito. Um dia ele já me confidenciara que Dr. Mabuse era um dos filmes que mais gostava na fase alemã de sua cinematografia. Um filme escrito por sua ex-mulher, Thea von Harbou. Dez anos depois deste filme, o cineasta realizou uma continuação, O Testamento do Dr. Mabuse (32), antinazista proibido na Alemanha até o fim da Segunda Grande Guerra. Achei então que era melhor levar Fritz para dar uma volta antes do segundo filme já que ele já não era mais nenhuma criança e tinha ficado muito tempo sentado. Fritz nasceu em 1890. Fomos ao banheiro, tomamos um café e já era hora de entrar na sala de novo. Desta vez para ver a primeira parte de Os Nibelungos (23), que – ao contrário do anterior – seria exibido totalmente mudo, o que me impedia de tossir.
O filme é o primeiro dos dois dirigidos por Fritz a partir do épico criado pelo músico Richard Wagner, que já trabalhava em cima da lenda da mitologia nórdica. Os Nibelungos narra a aventura do jovem Siegfried, filho do rei Sigmund, que enfrenta dragões, conquista a invulnerabilidade, realiza grandes feitos heróicos e encontra o grande amor numa princesa. Tudo em clima de grandiosidade e misticismo, que muita gente acredita que inspirou J.R.R. Tolkien na saga de O Senhor dos Anéis. Fritz caprichou no melhor que a UFA, o megaestúdio alemão, disponibilizou para ele. Cenários suntuosos, tecnologia assustadora (o dragão é perfeito para um filme que completou 80 anos) e mais uma vez uma fotografia arrebatadora cheia de truques e pequenas mágicas.
Nesse filme, Fritz Lang se imbui do espírito heróico e assume a lenda, a fantasia para realizar uma obra encantadora. Uma aventura que honra a tradição da história germânica-nórdica e flutua saborosamente pelo épico sem pudor. Então,no meio da projeção, Fritz olha para a tela e eu percebo um sorriso feliz no canto do seu rosto. Sabia que ele não falaria nada quando o filme terminasse então procuro vigiá-lo escondido. Fritz sorri porque sabe que fez o que um cineasta tem que fazer: um filme bom. Um filme inteligente e bom. E tem pouca gente que consegue isso com simplicidade mesmo que o tema seja grandioso.
Dr. Mabuse, o Jogador
[Dr. Mabuse: Der Spieler, Fritz Lang, 1922]
Os Nibelungos – A Morte de Siegfried
[Die Nibelungen: 1 Teil – Sigfrieds Tod, Fritz Lang, 1923]