ODISSÉIA À FRANCESA

Animação européia aposta na estranheza para vencer pelo diferencial

Vou confessar. Eu sou meio encantado pelos dois primeiros filmes de Jean-Pierre Jeunet e Marc Caro (Delicatessen, 91, e Ladrão de Sonhos, 95). Reconheço seus problemas, sobretudo os do segundo, cujo roteiro é frágil como um fio dental, mas seu universo onírico, meio infantil, meio sombrio, e seu desenho são coisas que me fascinam. É por isso que fica difícil esconder uma certa decepção ao sair de As Bicicletas de Belleville, cujo traço já tinha me despertado desejos secretos desde que a primeira foto surgiu na minha frente.

O longa de Sylvain Chomet começa com uma sucessão de seqüências encantadora: do show de TV até as cenas iniciais da velha senhora portuguesa e seu netinho triste. O melhor da tradição do bom cinema francês está ali: personagens encarcerados em suas prisões pessoais e silêncios que revelam bastante, além de uma trilha sonora rica, trabalhada em cima de uma canção deliciosa. Tudo embalado num pacote gráfico impecável, com traços muito distantes do padrão norte-americano (entenda aí Disney ou Nickelodeon), de uma melancolia explícita.

Mas quando o diretor abandona a infância do até então protagonista, a promessa que o filme apresenta aposta numa viagem quase surreal por um universo que parece ter saído de um filme de Jeunet e Caro. Um universo com um quê futurista, porém velho. Não que isso seja ruim. Reciclar idéias não é pecado, mas se valer do visual sem motivações realmente consistentes parece uma saída fácil para buscar o diferencial. A busca que a senhora Souza (uma portuguesa, com certeza) empreende começa interessante e quase idílica, mas se transforma numa sucessão de bizarrices que tiram o foco do que realmente importa: a relação entre avó e neto.

O Tiago, um dos melhores textos sobre cinema em blogues, levantou uma questão importante ao falar do filme: a falta de desenvolvimento do personagem do neto. Ele vira outra coisa de uma hora pra outra e ninguém sabe o que ele quer e o que ele pensa. Do contrário, a avó é fascinante em suas ricas e simples expressões e sua obsessão por alcançar seu objetivo. O abismo entre os dois é notável e incômodo. A ausência de diálogos, tentativa talvez de reproduzir a delicadeza dos filmes de Jacques Tati, esbarra justamente nessa falta de propósito. As Bicicletas de Belleville força um pouco a barra da fofura, os limites da estranheza. Apesar de conseguir bons momentos de interação entre plástica e conteúdo, e de exercitar a linguagem, a nota para o longa é apenas o suficiente para passar de ano.

AS BICICLETAS DE BELLEVILLE

Les Trilplettes de Belleville, França, 2004

Direção e Roteiro: Sylvain Chomet.

Elenco: Béatrice Bonifassi, Lina Boudreault, Michèle Caucheteux, Jean-Claude Donda, Mari-Lou Gauthier, Charles Linton, Michel Robin, e Monica Viegas.

Montagem: Dominique Brune, Chantal Colibert Brunner e Dominique Lefever.

nas picapes: Groove Is In The Heart, Deee-Lite.

Comentários

comentários

Um pensamento sobre “As Bicicletas de Belleville”

  1. Concordo com parte do comentário, principalmente o início, mas depois deixo de concordar para descordar veementemente, mas até aí são diferenças de gosto, o que assim como política e religião…não se discute! Só gostaria de uma correção….trilha sonora rica…tudo bem..mas a trilha é muito boa! Como diria um conhecido meu a quem tenho grande estima e admiração…é do grande caralho! Assim como o filme!…Fantástico, uma visão bem francesa dos norte americanos!

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