As intenções de Kim ki-duk sempre parecem nobres. Em Pietà, o sul-coreano se propõe a resgatar o humano que existe no mais corrupto dos capitalistas, um cobrador de empréstimos que faz com que devedores paguem suas dívidas com uma mutilação que garantirá o dinheiro do seguro. O problema, mais uma vez, é a forma que o diretor encontra para transmitir sua “mensagem”. O personagem, para ser retratado com suposta fidelidade à natureza de sua profissão e de seu envolvimento com o submundo, não aparece apenas como um homem violento, mas como uma pessoa disposta aos atos mais repulsivos possíveis, incluindo cenas de estupro, incesto e canibalismo. Um pacote que ajudaria a torná-lo repugnante para o espectador e que pretensamente enobreceria sua redenção.
Sob a égide do artista que tem uma missão a cumprir e se apóia na liberdade de expressão, Kim ki-duk, incorporando a natureza do personagem que criou, não se furta a criar imagens de impacto, mas que parecem existir pelo simples motivo de provocar uma reação. O cineasta utiliza a história de Gang-Do como forma de refletir sobre a corrupção do sistema, que coopta quase que automaticamente homens comuns para papéis de vilão. Essa condição, a do homem comum, é ressaltada quando surge no filme aquela que se apresenta como sua mãe, a Pietà do título, que o teria abandonado ainda criança. O retorno da mãe desperta um processo de transformação no protagonista, como se Gang-Do retornasse a um estado de pureza encerrado quando se viu sozinho no mundo e que culminou quando ele foi corrompido pela máfia.
Uma visão supostamente humanista, ou mais especificamente, uma visão ingênua já que os mecanismos com que Kim ki-duk movimenta a história são maneiristas e tentam encarceram o espectador para que este compre sua proposta. Uma visão que o próprio diretor trata de desmoralizar quando lança um olhar ainda mais determinista e ainda mais simplório sobre a questão, condenando os tais homens comuns, como seu personagem, à culpa e à punição. Na visão do diretor, eles merecem ser castigados com a mesma naturalidade com que praticam suas perversidades. A vingança surge não como consequência natural de seus atos, mas como solução mais adequada para a questão. Não deixa de ser curiosa essa transformação do diretor numa espécie de pensador do nosso tempo, já que seu cinema ficou famoso pelo budismo plastificado, ressaltado em alguns de filmes mais conhecidos.
Kim ki-duk, ao longo dos anos, vem praticando um cinema de maneirismos e maniqueísmos que se traveste com os mais variados figurinos. Da pretensa espiritualidade de Primavera, Verão, Outono, Inverno… Primavera até a crítica ao culto à imagem de Time, o diretor vem dando seu pitaco sobre todos os temas que encontra pelo meio do caminho. Sua “reflexão” sobre o mundo capitalista foi premiada pelo Festival de Veneza, o que pode indicar que algumas pessoas dividem seu olhar para os labirintos de nossa sociedade que o cineasta pretende desnudar tão explicitamente. Ou talvez que muito mais gente partilhe da culpa despertada em seu protagonista. Se isso legitima a visão de Kim ki-duk, o tempo irá dizer. Parece mais fácil acreditar que o sul-coreano tem um forte um poder de persuasão com seu maniqueísmo inerente.
Pietà
[Pietà, Kim ki-duk, 2012]