Numa cena rápida de Aquarius, Clara, a personagem de Sonia Braga, depois de visitar o túmulo do marido no cemitério, observa dois coveiros retirando os restos mortais de uma cova para desocupá-la. A imagem, que apenas exemplifica uma lógica comum aos empreendimentos funerários, dura cerca de um minuto, talvez menos, mas resume boa parte do drama da própria Clara e da essência do filme de Kleber Mendonça Filho: o que está em discussão é a troca do velho pelo novo. Ou ainda, do velho pelo novo para reforçar o velho. O olhar de estranhamento da protagonista para aquela cena tem justificativa. Clara se enxergou ali. Logo ela, que sempre foi uma mulher avançada, jornalista, uma mãe que deixou os filhos com o marido durante dois anos para morar fora do país. Logo ela, que se define como “uma mistura de velhinha com criança”. No contexto de Aquarius, essa mulher moderna, que sempre soube driblar muito bem a herança secular de um Nordeste ainda preso a vícios familiares, virou uma peça de museu.
Ela é a última moradora do prédio que batiza o filme, na praia de Boa Viagem, em Recife, a “louca” que empaca os projetos da construtora que quer demolir o edifício e que impede o progresso. Como mostram os primeiros 20 minutos de filme, o edifício Aquarius é o lugar onde Clara vive há mais de 30 anos, onde seus filhos cresceram, onde ela guarda seus discos e sua história. A memória, mais uma vez, é parte intrínseca da narrativa de um filme do cineasta pernambucano, mas depois do olhar mais cruel para o passado de O Som ao Redor, desta vez, Kleber se volta para trás com nostalgia. As paredes cheias de discos aparecem em várias cenas do filme, que é costurado por músicas que parecem fazer parte da própria história do diretor. Elas emolduram essa peça de resistência de Kleber ao sistema, ao cinema fácil, à ideia de que o progresso passa pela destruição do passado. O grande trunfo do cineasta foi saber como transformar essa manifestação política numa história cheia de humanidade. Se O Som ao Redor era mais “agressivo” enquanto discurso e em suas opções de linguagem, Aquarius trabalha com humanidades.
A presença de Sonia Braga, que há quinze anos não fazia um filme brasileiro, enche de luz o filme. Literalmente. A atriz parece apaixonada pela personagem e a defende de todas as formas possíveis. Cada cena ganha um brilho diferente por causa de sua interpretação discreta, mas sempre muito forte. A resistência de sua personagem é a mesma resistência do Ocupe Estelita, movimento que condena a venda ilegal de uma área do porto do Recife para imobiliárias. Mas Clara não é uma mulher de panfletos. Sua maior ação política é manter a integridade de sua alma, que resistiu a um câncer e a tanta história. Aquarius tem começo, meio e fim mais claros do que o longa anterior de Kleber. A narrativa é muito mais tradicional e a opção por usar um elenco totalmente profissional, ao contrário de O Som ao Redor, que tinha muitos atores amadores, provavelmente vai deixar o espectador pouco afeito a experimentações mais confortável. A memória que rege a linha narrativa também ajuda a envolver o espectador. É um filme relativamente fácil de acompanhar, sem mensagens cifradas, onde o grande talento foi trazer suas discussões para o primeiro plano, de maneira direta, que convida quem assiste ao filme à ocupação.
Portanto, boa parte da polêmica em torno de Aquarius não se justifica. A discussão em torno do longa parece ter se resumido ao protesto contra o afastamento da presidenta Dilma Rousseff que a equipe do filme fez antes de sua sessão de gala no Festival de Cannes, onde o longa brasileiro participou da seleção principal, coisa que não acontecia havia oito anos. E, afinal, conseguir ser incluído num festival de renome significa ser um bom filme? Afinal, o que faz um bom filme? Sua capacidade de comunicação com o espectador, a qualidade técnica de sua produção ou os desafios que ele propõe para quem o assiste, sejam temáticas, de formato ou de linguagem? A resposta é que não existe resposta. Ou “todas as alternativas acima”. E outras tantas.
Para muitos detratores, a análise da obra começou a passar necessariamente pela postura política “do projeto” fora da tela, como se o trabalho de Kleber já não fosse suficientemente político dentro dela, uma predisposição que o diretor já demonstrava em grande parte de seus curtas e, principalmente, em seu longa anterior. O Som ao Redor lança ou afirma algumas de suas temáticas favoritas: a desordem na ocupação das grandes cidades, a especulação imobiliária, o resquício do coronelismo secular nordestino nos dias de hoje. Em Aquarius, ele apenas vai mais longe. O cinema de Kleber é um cinema político por natureza. Chamar atenção para a atitude política das ações dele e de sua equipe, como se desta vez ele tivesse ultrapassado os limites, é até ingênuo, porque ele sempre fez isso. Se a questão é fazer um filme de cunho político em vez de se centrar na “arte de contar uma história” e estes blábláblás, é preciso dar uma estudada e assistir mais filmes, sobretudo daqueles diretores que construíram carreiras de um cinema iminentemente político, como Costa-Gavras, Marco Bellocchio, Ken Loach, Spike Lee e Jafar Panahi. E tantos outros.
Arte e política são intrínsecas. Pode parecer novidade, mas todo filme tem uma postura política, desde os documentários mais engajados e literais, como O Ato de Matar, de Joshua Oppenheimer, que tem um alvo bem claro (o governo indonésio), até as comédias aparentemente mais simples, como Sócios no Amor, de Ernst Lubitsch, que em plenos anos de 1930 dá girl power para as mulheres, fala de relacionamentos a três, impõe a revolução nos mínimos detalhes. A obra de arte é um dos maiores e melhores palcos para qualquer manifestação política há mais ou menos 120 anos. Um pouco mais, talvez. Aquarius é extremamente político e crítico a um status quo pernambucano, nordestino, brasileiro e a um estado de espírito contaminado por velhas verdades e muitas dependências. Todos os envolvidos estão extremamente cientes desta postura, mas em nenhum momento a necessidade de discurso se sobrepõe à expressão artística. O filme levanta o cartaz para quem quiser ver porque tem direito de fazer isto. E Kleber Mendonça Filho soube levantar esse cartaz como poucos. Política e arte andam juntas no mundo e no cinema. E, em Aquarius, elas vivem um longo e intenso triângulo amoroso com Sonia Braga.
Aquarius ½
[Aquarius, Kleber Mendonça Filho, 2016]
* texto escrito originalmente para o UOL
Na minha idade já não me interesso se o filme tem “mensagem”, “conteúdo” e outras bobeiras que os jovens politizados tolamente valorizam (compreendemos que isso é produto da natural imaturidade dos jovens), assim como também os fanatizados (de todas as idades) por ideologias e/ou por religiões, todas com mais “furos” que uma peneira velha. O que me interessa é se o filme é bom ou não (se está bem realizado e interpretado, se o ritmo é adequado e se ele prende a atenção do espectador, entre outras qualidades cinematográficas). As atitudes políticas da equipe na França (um grande mico, independente do afastamento da presidente Dilma ser juridicamente correto ou não) não tem para mim o mínimo interesse, no que se refere ao ato de assistir o filme. Um abraço.
Excelente crítica!