Apesar da literatura já nos ter dado grandes exemplos de romances epistolares, como Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, ou o próprio Drácula, de Bram Stoker, criar uma narrativa a partir de uma troca de cartas não é tarefa das mais fáceis. Transportar esta narrativa para o cinema é uma missão ainda mais complicada porque, num meio que a ação dita as regras, inclusive visualmente, deixá-la num plano secundário pode ser arriscado e, dependendo de como isso for feito, pode dar um tom afetado à obra. Mas o cineasta Ivo Ferreira assume estes riscos conscientemente e até parece se orgulhar deles em Cartas da Guerra.

Baseado num livro do António Lobo Antunes, o filme usa as missivas não apenas como modelo narrativo, mas também como plataforma estética para comportar o texto original do autor e justificar a tradução. cartas da guerraEsse jogo com a literatura acontece não apenas no respeito ao formato da matéria-prima, mas também na confeccção do protagonista do livro e do filme. O jovem oficial médico português, enviado a serviço para Angola, então colônia da coroa, além de escrever as cartas para a esposa grávida que deixou na pátria mãe, é, ele mesmo, um aspirante a escritor. Desta forma, a relação com a literatura acontece em todos os planos, se tornando essencial e intrínseca à obra.

Um grande senão é que a natureza da escrita através de cartas pede uma embalagem de certa forma lírica, e algumas vezes até onírica, da maneira de contar essa história. O diretor, de uma maneira até natural, consegue traduzir visualmente esse lirismo num trabalho de fotografia bastante delicado que coleta imagens, em preto e branco, explorando ao máximo o cenários que encontra da África. A seleção destas imagens não é óbvia e valoriza cada verso de Lobo Antunes. O tom que poderia ser um problema, caso fosse um objetivo por si só, parece bastante oportuno, na medida certa. O ensaio poético de Lobo Antunes ganha corpo no ensaio igualmente poético de Ivo Ferreira. Há alguns momentos em que a tradução entre artes é de extrema sofisticação.

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[Cartas da Guerra, Ivo Ferreira, 2016]

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