A inquietude de um jovem diante das opções que o mundo lhe oferece é o tema central de Depois da Chuva, longa-metragem de estreia de Cláudio Marques e Marília Hughes, que finalmente chega ao circuito comercial depois de quase dois anos de que estreou em festivais. No filme, que abre espaço para uma nova frente de produção no cinema nordestino, a Bahia, o incômodo das personagens – e dos cineastas – é com as convicções. Estamos em 1985 e o Brasil vive o clima do iminente fim da Ditadura, uma época que marcou profundamente Marques. O protagonista, criado a partir de experiências pessoais do diretor, não encontra respostas nem no clima de esperança fabricado pelo movimento Diretas Já, nem no discurso utópico do grupo de anarquistas a que se junta. A fúria silenciosa do personagem só encontra voz no fortíssimo movimento punk rock baiano do início dos anos 80, praticamente desconhecido fora do estado e recriado com certa ousadia pelos diretores.
Desde a partida, temos um filme praticamente em primeira pessoa. A consciência e o posicionamento políticos que pulsam no longa são herdeiros da memória do diretor, o que impregna a obra de um tom intimista que é sua mola propulsora. A interpretação de Pedro Maia, que vive a personagem principal, é uma bela surpresa: ele impressiona ao conseguir traduzir as dúvidas de um jovem em busca de respostas com melancolia e raiva. A cena em que canta, travestido, numa apresentação do colégio, é um dos momentos mais fortes do filme, que captura uma Bahia de classe média branca, pré-axé, enquanto mostra o surgimento dos arquétipos políticos nos adolescentes. Talvez de uma forma um tanto didática, mas que funciona.
Marques e Hughes abriram mão do quase irresistível estereótipo baiano para fazer um filme sem sotaque, mas com outros temperos. Eles apontam para uma Bahia diferente, onde as pessoas escutam rock e têm uma atitude rock. Ao assumir esse recorte, ao eleger essa como a Bahia que eles queriam representar, sem dar chance ao que, a grosso modo, se entende como cultura popular baiana, os diretores deram a cara a tapa e enfrentaram quem esperava um retrato mais acarajé de um estado tão marcado pelo afro, pela religião, pelo axé music. Ao recusar o regional, seu filme se tornou mais universal para uns, mais afetado para outros. Em todo caso, os passos do protagonista nesse drama tão intimista quanto soteropolitano, fazem a diferença de Depois da Chuva.
Depois da Chuva ½
[Depois da Chuva, Cláudio Marques & Marília Hughes, 2013]
entrevista com o diretor Cláudio Marques
Depois da Chuva apresenta uma Bahia diferente do que quem vê o estado de fora espera da Bahia. Isso foi intencional?
Eu nunca vou esquecer que uma jornalista em Brasília, ao vivo, me “acusou” de mostrar uma Bahia melancólica… e eu tive que responder “Sim, há tristeza e conflitos na Bahia”. Isso foi ao vivo! Fato é que existem muitas “Bahias”, mas a mais conhecida é a barroca. Aquela coisa do “Baiano não nasce, estréia”. Nada contra, mesmo! Mas, somos mais que isso. E devemos nos representar dentro dessa diversidade. Foi durante as filmagens que nós compreendemos que o naturalismo do Depois da Chuva traz uma Bahia em muito diferente da forma como ela vem sendo tratada. Era um outro tom, muito mais baixo que o usual, mas não menos verdadeiro.
Jamais vou esquecer uma vez em que eu cheguei no aeroporto de Salvador e entrei em um táxi. Naquele dia, o motorista não trocou uma única palavra comigo durante todo o trajeto. Eu bem que tentei, mas ele se negou a manter um diálogo e apenas fez o trabalho dele. Em um filme ou série para a TV, um motorista de táxi na Bahia quase sempre está sorridente, eufórico e falando pelos cotovelos sobre a “Terra da Magia” a um visitante. Essa representação do baiano já foi muito utilizada, está desgastada. Precisamos retratar o nosso silêncio, também.
Por outro lado, Depois da Chuva foi exibido em diversos festivais mundo afora e eu entendi que a Bahia está para o Brasil assim como o Brasil está para o mundo. Sempre a primeira questão que surgia nos debates era o da representação: onde estão o samba e as pessoas felizes dançando no meio da rua? Por quê o punk?
Quando seu filme foi exibido em festivais, algumas críticas o acusavam de querer “camuflar” a Bahia, trocando ritmos regionais pelo rock? Falta informação sobre o rock baiano dos anos 80?
O filme se passa nos anos 84 e 85, momento imediatamente anterior ao surgimento do Axé-Music, que com o seu profissionalismo e poder de sedução fez com que a musica na Bahia passasse a ser vista de uma forma quase que única. Mas, tínhamos (e temos) uma cena pulsante que ficou na margem, com raras exceções. É verdade que falta informação sobre a nossa diversidade artística e cultural, mas creio que se trata de uma responsabilidade grande nossa. Estamos acomodados com a forma que a Bahia é vista. De novo, voltamos à questão da representação.
Que bandas participam de uma maneira ou de outra do filme?
A música possui função dramatúrgica. Não é mera trilha sonora, elas contam a história no filme. Muitas vezes, as musicas surgem em momentos de virada para o protagonista. Foram escolhidas canções que de alguma forma me influenciaram fortemente durante a minha adolescência, nos anos 80. Crac! e Dever de Classe são bandas baianas dos anos 80 e que possuem participações fundamentais. Destaco, aqui, a participação ao vivo na fábrica abandonada. A Crac! é uma banda jazz-punk, que fez um disco incrível produzido pelo Paulo Barnabé, irmão do Arrigo, no início dos anos 90. Esse disco JAMAIS foi lançado. É um dos discos mais espetaculares que eu já escutei. Eu sempre quis lançar o disco ou algumas músicas desse álbum. No filme, temos duas delas: “Canguru” e “Formigueiro”. A Dever de Classe é uma banda hardcore com influências do grupo californiano Dead Kennedys, que também aparece no filme com o clássico punk “Califórnia Uber Alles”. Preciso ainda citar Mateus Dantas, maestro e multi-instrumentista, discípulo do músico suíço Walter Smetak, que compôs algumas músicas para o filme. Destaco aqui a interpretação de “Poema em Linha Reta”, de Fernando Pessoa. No filme, ela surge quando as coisas passam a não funcionar tão bem para o protagonista. Ou seja, a frase “Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo” já antecipa o que vai acontecer dali por diante.
O protagonista não consegue encontrar respostas para suas angústias nem no clima das Diretas Já, que se espalhava pelo país, nem na revolta do grupo de anarquistas. Isso era (é) um incômodo seu também?
Ainda muito jovem, em 1984, eu não consegui me animar com a aliança que envolvia José Sarney, Antonio Carlos Magalhães e Jarbas Passarinho, nomes que deram suporte à ditadura. Ao mesmo tempo, o romantismo e contradições dos anarquistas logo me levaram a um grau de desânimo e até mesmo depressão…. Embora até hoje eu considere os textos anarquistas como os mais belos e lúcidos já escritos, em termos políticos, aos 16 anos eu não me sentia convicto para empunhar uma bandeira ou uma arma em nome de um ideal.
No filme, Caio (Pedro Maia) é um jovem em formação. Curioso, inteligente, ele se sente estimulado e à vontade no casarão de artistas anarquistas. Mas, ele não é como Tales (Talis Castro), um libertário convicto, romântico, que não vai negociar com ninguém. Caio vai experimentar um pouco de tudo até finalizar a sua transição. Dessa forma, mais do que um filme sobre o Brasil dos anos 80, eu acho que “Depois da Chuva” deve ser visto como um filme sobre a desilusão da juventude.
Você tem um longo envolvimento com o cinema, organizando festivais, administrando cinemas, mas este é seu primeiro longa-metragem como diretor, dividindo a tarefa com a Marília. Como foi esta transição?
Marília e eu trabalhamos juntos desde 2006. Dirigimos, produzimos, montamos, escrevemos os roteiros de seis curtas. Desde 1995, eu trabalho com cinema nas mais diferentes etapas. Gosto muito de quase tudo, acho que apenas a finalização dos filmes tem se revelado algo muito difícil.
Pedro Maia é um talento. Como você descobriu o potencial dele como ator?
Depois de procurar bastante e em diferentes lugares e até mesmo em outras cidades, nós nos deparamos com Pedro Maia e não tivemos dúvida que ele era o nosso Caio. Pela forma tranqüila com que ele se portava diante da câmera, pelo olhar expressivo e por ser um menino apaixonado pelo que faz. Marília e eu compreendemos isso rapidamente. Trabalhamos oito meses com Pedro antes de filmar e todo o elenco foi escolhido a partir dele. Nos preparamos para eventuais crises com Pedro, um adolescente de 16 anos. Essa crise ainda está por vir… bem, eu acho que não virá mais!
Finalmente Depois da Chuva chega no circuito comercial. Foi difícil lançar o filme?
Está sendo prazeroso. Estamos viajando muito e juntos com Pedro Maia e Sophia Corral, promovendo debates, conversando sobre juventude e política. As conversas normalmente rendem muito com o público. Muitos textos positivos sobre o filme foram publicados nos últimos dias. Sabemos, no entanto, que a publicidade rege as bilheterias. Ou seja, por mais que nos esforcemos, será muito difícil alcançar o grande público. Mas, estamos movimentando as redes sociais e trabalhando ao máximo para que um número expressivo de pessoas tenha acesso ao filme. As diversas críticas positivas e prêmios que Depois da Chuva recebeu estão ajudando! Vale registrar a parceria com Adhemar Oliveira, da distribuidora Espaço Filmes. Creio que o Adhemar é um dos poucos a trabalhar politicamente em favor do filme brasileiro, em termos de distribuição e exibição.
Pernambuco tem sido, nos últimos anos, um dos maiores pólos de produção de cinema no Brasil. Seu filme que abre espaço para outra frente de produção no Nordeste. É o começo de um movimento?
Eu realmente gostaria de acreditar nisso, pois temos muita gente boa em muitas cidades e em diferentes estados do nordeste. Uma geração com muito desejo de fazer cinema, que se “joga” para filmar com pouco dinheiro e consegue resultados admiráveis. Pernambuco possui uma geração admirável. O talento desses cineastas tem sido reconhecido pelo governo do estado, que criou e mantém uma política constante de investimentos na área. Acredito que o mesmo poderia estar acontecendo na Bahia e Ceará, por exemplo. Nesses dois estados surgiram alguns talentos, que poderiam ter sido estimulados a dar continuidade com políticas contínuas para o setor. Mas, não foi assim.
Na Bahia não existe um pensamento para o cinema. Não há um banco de dados de projetos, planejamento para os próximos anos e as decisões acabam nas mãos de comissões que a cada ano se modificam. Nos últimos quatros anos, nós tivemos três editais promovidos pela Secretaria de Cultura. Apenas dois foram plenamente pagos. E os valores desses editais são consideravelmente menores que os de Pernambuco. Assim, eu tenho visto muitos jovens que poderiam estar trabalhando com cinema migrando para outras áreas.