ANTES DA REVOLUÇÃO

Ou quando Che Guevara pôs o pé na estrada e descobriu a América Latina

Che Guevara é o personagem mais pop da história da América Latina. Camisetas estampadas com o rosto do revolucionário argentino são artigos básicos no guarda-roupa dos pré, pós e dos ainda-adolescentes. É cool ter a cara do homem que virou mito político retratada em alguma peça do vestuário. Mesmo que não se tenha muita idéia de quem ele foi ou do quê ele fez. Diários de Motocicleta, o novo filme de Walter Salles, é sobre o que veio antes. Ou sobre algo que veio antes. E antes de virar Che, Ernesto Guevara foi um estudante de medicina, que junto com um amigo, se lançou pelas estradas da América do Sul em cima de uma moto no início dos anos 50. Diante do hype em torno da figura de Guevara, a escolha do cineasta por uma história do Che pré-revolução parece bem mais interessante do que mostrar a ação política do personagem.

Guevara e seu amigo Alberto Granado não têm grandes ambições quando começam sua viagem. Há algo de brincadeira e de aventura – e é nesse ritmo que o filme segue por boa parte de seu percurso, cheio de namoradas, vacas, paisagens bonitas e quedas de moto. Gael García Bernal mais uma vez entrega um personagem cativante, tarefa que tem desempenhado com destreza desde que surgiu no cinema, mas, num cenário amplamente favorável, é Rodrigo de La Serna que enche a tela com um Sancho Pança bonachão e sorridente. Sem interesses maiores para dar trabalho, Walter Salles tem tempo para fazer o que melhor domina: estetizar seu filme. Trabalha a fotografia em filtros e movimentos, e solta seus personagens ao sabor de uma bela trilha sonora. Durante mais de uma hora, Diários de Motocicleta é um filme sem pretensão, bom de assistir. Depois, ele começa a virar filme sério.

A idéia de uma “viagem transformadora” é um recurso bastante usual em qualquer narrativa, seja cinematográfica ou não. Nada muito original, mas também nada que fuja muito dos efeitos reais de uma jornada, em qualquer nível que ela aconteça. Até a ida à padaria da esquina pode transformar alguém. A passagem entre os dois tons do filme é meio brusca, o que é bem perceptível na narrativa, mas também nunca é ofensiva, o que alguns textos quiseram fazer crer. As primeiras demonstrações do que viria a ser o líder político Che Guevara são um desfecho bastante previsível, mas parecem necessárias ou mesmo fundamentais quando se apresenta um personagem do porte deste. Seria impossível não se contaminar pelo retratado? Provavelmente sim. Mas a contaminação no filme de Walter Salles é, guardando as devidas proporções, bem menor do que a do cartunista Harvey Pekar no cultuadozinho Anti-Herói Americano (Robert Pulcini e Shari Springer Berman, 03), onde os diretores/roteiristas são totalmente dependentes do personagem.

Difícil é concordar com o que muita gente tem falado por aí – de que este é o melhor filme do cineasta – algo bastante complicado de afirmar. Não porque ela seja bom ou ruim, mas porque o cinema de Salles tem um defeito que supera todas as suas boas qualidades: é um cinema com pouca emotividade. Mesmo no poço de lágrimas que pretende ser Central do Brasil (98), o excesso de cálculo atrapalha um pouco o efeito dramático. Os filmes do diretor parecem estar todos no mesmo nível (exceto o esquemático Abril Despedaçado, 02), trabalhos feitos com competência técnica e uma tentativa às vezes tola de humanizar os personagens. Nesse sentido, Diários de Motocicleta parece bem mais honesto que os outros, já que desde o início há a intenção clara de mostrar alguém que ainda é um rascunho do homem que viria a ser.

DIÁRIOS DE MOTOCICLETA

Diarios de Motocicleta, Estados Unidos/Grã-Bretanha/Alemanha/Argentina, 2004.

Direção: Walter Salles.

Roteiro: Jose Rivera, com base nos livros Con el Che por America Latina, de Alberto Granado, e Notas de Viaje, de Ernesto Guevara.

Elenco: Gael García Bernal, Rodrigo De la Serna, Jaime Azócar, Ulises Dumont, Facundo Espinosa, Susana Lanteri, Mía Maestro, Mercedes Morán, Jean Pierre Noher, Gustavo Pastorini.

Fotografia: Eric Gautier. Montagem: Daniel Rezende. Direção de Arte: Carlos Conti. Música: Gustavo Santaolalla. Figurinos: Beatriz De Benedetto e Marisa Urruti. Produção: Michael Nozik, Edgard Tenenbaum e Karen Tenkhoff.

nas picapes: A Letter To Memphis, Pixies.

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16 comentários sobre “Diários de Motocicleta”

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