Verossímil, diz o Houaiss, é aquilo “que parece verdadeiro” ou “que é possível ou provável por não contrariar a verdade; plausível”. Verossimilhança é o principal problema de Do Começo ao Fim, um filme em que simplesmente não se consegue acreditar. Essa afirmação, embora possa ter alguma leitura moralista, está longe disso. Justamente porque o único mérito do filme de Aluísio Abranches – guarde o “único” – é tocar num tema tabu. E não existe maior tabu do que o incesto.
Seria, então, o caso de chamar o diretor de corajoso e estender o cumprimento a todos os envolvidos nos longa-metragem, sobretudo os atores que deram a cara a tapa e colocaram em risco a possibilidade de virarem galãs globais. Mas o adjetivo, corajoso, perde qualquer sentido depois de assistir ao filme justamente por causa da verossimilhança. Do Começo ao Fim, a história de amor entre dois irmãos, não oferece o menor conflito. Se não ter conflitos já é pecado mortal para um filme com uma temática convencional, o que dizer de uma obra que toca num assunto tão polêmico?
O diretor parece apostar que o tema já é tão particular que somente o fato de se estar tratando dele é o suficiente. Em momento algum do filme, o maior tabu que existe causa espanto, estranhamento ou gera qualquer tipo de reação contrária. A única cena em que se desenha algo do tipo é resolvida com uma passagem de tempo e uma solução pobre de roteiro, como se fosse uma maneira rápida de se livrar de um incômodo e se abster de falar sobre preconceito. Não passa disso, o que leva a crer que Abranches situa seu filmes numa dimensão paralela, onde a sociedade enxerga o amor entre dois irmãos, homens ainda por cima, como mais uma das brincadeiras da vida. Ê, mundão!
Fica bastante claro que Abranches tem uma boa intenção em adotar essa narrativa rio-sem-correnteza: ele quer que a história de amor entre os irmãos seja vista pelo prisma da história de amor e não pela polêmica. Mas entre entender o namoro dos dois como mais uma possibilidade de relacionamento e simplesmente ignorar como esse namoro seria olhado, entendido, recebido pela sociedade nos padrões em que ela está formada hoje é muita ingenuidade, ou pior, é uma atitude acovardada. Qualquer pessoa com o mínimo de discernimento sabe que uma relação desta natureza enfrentaria percalços bem maiores do que uma viagem para o exterior.
Guardou o “único”, né? Pois bem, os problemas de Do Começo ao Fim não se resumem a verossimilhança ou acomodação. O filme é de uma fragilidade dramática que parecia ter sumido do cinema brasileiro. Nada parece realmente sólido no filme. Como se esquiva de fazer um filme inteligente, Abranches dirige como se estivesse num comercial de sabonete, com tudo muito limpinho em cena. Visualmente há momentos constragedores, como a cena em que os dois irmãos ficam pelados na sala: aí percebe-se que Abranches adota uma estética gay (músculos, corpos depilados, riqueza e conforto) para atrair um público específico, que se contenta apenas com beleza.
Não há direção de atores. Como o roteiro não ajuda, mesmo nas cenas mais banais, os intérpretes parecem vagar em busca de alguma coisa que indique o que fazer, que tom adotar. Quem mais sofre são os protagonistas adultos: Rafael Cardoso mantém sua performance a la Malhação, que trouxe da TV Globo, não incomoda. Mas João Gabriel Vasconcellos, a quem cabe manter o clima de sofrimento (ainda que nunca se justifique o sofrimento no filme), aparece com os olhos marejados e a expressão de “tenha dó de mim” em todas as cenas. É quase insuportável, ainda assim, acredite, ele é o menor dos problemas.
Do Começo ao Fim
[Do Começo ao Fim, Aluisio Abranches, 2009]
O filme é bom sim, ele traz audaciosamente uma praxis de que gays podem viver uma história de amor onde uma minoria, por amarem demais os envolvidos e saberem que o que eles sentem não é “descaração” não é rebeldia e não é doença, onde a família conhecendo os envolvidos ao invés de interná-los, mandar matá-los ou expulsá-los de casa, os protegem do resto da sociedade. Quando vemos que um pai expulsou uma filha de casa por ter engravidado do primo uns acham absurdo outros acham normal. O filme não tem verissimilhança porque é uma fábula, existe num tempo e local, onde não sei porque a natureza de repente resolveu criar seres do mesmo sangue que se amaram e nessa linha tênue, onde o desejo controverso de quem assiste e vive ainda numa sociedade homofóbia não consegue desnudar-se de uma “autofobia” para ver que Abranches quis dizer que: dois homens podem se amar mesmo que sejam irmãos sem serem massacrados por toda a sociedade,UMA MÃE A FRENTE DO SEU TEMPO PODE AMAR DOIS MENINOS QUE SE AMARAM SENDO IRMÃOS. ELES CONTINUARAM SENDO AMADOS POR SUA MÃE…Será que há lição nisso?Há tanta falta de verdade nisso para tornar-se a principal discussão sobre uma obra de arte?Ou vamos discutir o que é arte?Acho que isso sim já foi feito nos séculos passados.
“Abranches adota uma estética gay (músculos, corpos depilados, riqueza e conforto) para atrair um público específico, que se contenta apenas com beleza”. Que “público específico”, cara pálida?
Espero que o filme não seja tão hipócrita quanto a sua crítica. Só concordo com a questão da verossimilhança e isso parece ser o grande problema para o filme.
Endosso as palavras do Jean Fabian.
Pois é, verossimilhança só é coadjuvante em filmes escapistas – e não parece ser a intenção deste aqui.
Na minha primeira aula da pós de roteiro na Faap, a questão da verossimilhança já foi a questão principal. Por mais que o filme envolva magia, aspectos sobrenaturais, whatever… o importante é fazer o expectador acreditar. Muito boa sua crítica. Fiquei curiosa para ver o filme e poder apoiá-lo ainda mais 🙂
Quando assisti ao trailer imaginei as caras de espanto e horros dos espectadores. Aquele incomodo sabe? Como moro em Blumenau, SC, esse filme nem entrou em cartaz. Vou tentar assistir semana que vem.
É realmente constrangedor.
Esse filme me deixou constrangido e com vontade de sair do cinema desde os primeiros minutos. Concordo com tudo no texto, só prefiro acreditar que João Gabriel tenha algum PROBLEMA nos olhos, porque não é possível a pessoa fazer aquela cara e achar que está atuando.
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Acho mudaria muito porque o incesto ainda é nosso maior tabu. Eu sinto muito em ver um filme que, como você diz, é o primeiro a mostrar um casal de gay felizes (se bem que não é exatamente o primeiro), ser tão raso na construção dessa felicidade.
Acredito que posso defender o filme: acho estranheza doer tanto na lógica neurótica da nossa sociedade da verossimilhança ter um filme que trate à revelia de algo tão desconhecido.Não obviamente a homossexualidade e sim a questão do incesto. Arte e visão são inerentes e específicas da obra. O que vejo é que foi a primeiríssima vez que um diretor causou furor com um filme de felicidade homossexual e curiosamente esses gays são irmãos e vivem numa década onde o preconceito velado é incomensurável. Não acredito que o filme seja ingênuo, e não é, senti sim que a idéia incomoda tanto que a maneira de enxergar essa realidade, também não a incestuosa separadamente, e sim gays vivendo o incesto e sendo acompanhados in loco. Talvez a questão seja que eles não são mortos, ou que não são apedrejados na praça, ou, ou, ou…Façamos um exercício simples para ver se muda a dinâmica,se a verossimilhança aparece, se a realidade muda magicamente: substituamos o casal gay por um casal hetéro, ele negro e ela loira. Mudou alguma coisa?