Rafael Cardoso, João Gabriel Vasconcellos

Verossímil, diz o Houaiss, é aquilo “que parece verdadeiro” ou “que é possível ou provável por não contrariar a verdade; plausível”. Verossimilhança é o principal problema de Do Começo ao Fim, um filme em que simplesmente não se consegue acreditar. Essa afirmação, embora possa ter alguma leitura moralista, está longe disso. Justamente porque o único mérito do filme de Aluísio Abranches – guarde o “único” – é tocar num tema tabu. E não existe maior tabu do que o incesto.

Seria, então, o caso de chamar o diretor de corajoso e estender o cumprimento a todos os envolvidos nos longa-metragem, sobretudo os atores que deram a cara a tapa e colocaram em risco a possibilidade de virarem galãs globais. Mas o adjetivo, corajoso, perde qualquer sentido depois de assistir ao filme justamente por causa da verossimilhança. Do Começo ao Fim, a história de amor entre dois irmãos, não oferece o menor conflito. Se não ter conflitos já é pecado mortal para um filme com uma temática convencional, o que dizer de uma obra que toca num assunto tão polêmico?

O diretor parece apostar que o tema já é tão particular que somente o fato de se estar tratando dele é o suficiente. Em momento algum do filme, o maior tabu que existe causa espanto, estranhamento ou gera qualquer tipo de reação contrária. A única cena em que se desenha algo do tipo é resolvida com uma passagem de tempo e uma solução pobre de roteiro, como se fosse uma maneira rápida de se livrar de um incômodo e se abster de falar sobre preconceito. Não passa disso, o que leva a crer que Abranches situa seu filmes numa dimensão paralela, onde a sociedade enxerga o amor entre dois irmãos, homens ainda por cima, como mais uma das brincadeiras da vida. Ê, mundão!

Fica bastante claro que Abranches tem uma boa intenção em adotar essa narrativa rio-sem-correnteza: ele quer que a história de amor entre os irmãos seja vista pelo prisma da história de amor e não pela polêmica. Mas entre entender o namoro dos dois como mais uma possibilidade de relacionamento e simplesmente ignorar como esse namoro seria olhado, entendido, recebido pela sociedade nos padrões em que ela está formada hoje é muita ingenuidade, ou pior, é uma atitude acovardada. Qualquer pessoa com o mínimo de discernimento sabe que uma relação desta natureza enfrentaria percalços bem maiores do que uma viagem para o exterior.

Guardou o “único”, né? Pois bem, os problemas de Do Começo ao Fim não se resumem a verossimilhança ou acomodação. O filme é de uma fragilidade dramática que parecia ter sumido do cinema brasileiro. Nada parece realmente sólido no filme. Como se esquiva de fazer um filme inteligente, Abranches dirige como se estivesse num comercial de sabonete, com tudo muito limpinho em cena. Visualmente há momentos constragedores, como a cena em que os dois irmãos ficam pelados na sala: aí percebe-se que Abranches adota uma estética gay (músculos, corpos depilados, riqueza e conforto) para atrair um público específico, que se contenta apenas com beleza.

Não há direção de atores. Como o roteiro não ajuda, mesmo nas cenas mais banais, os intérpretes parecem vagar em busca de alguma coisa que indique o que fazer, que tom adotar. Quem mais sofre são os protagonistas adultos: Rafael Cardoso mantém sua performance a la Malhação, que trouxe da TV Globo, não incomoda. Mas João Gabriel Vasconcellos, a quem cabe manter o clima de sofrimento (ainda que nunca se justifique o sofrimento no filme), aparece com os olhos marejados e a expressão de “tenha dó de mim” em todas as cenas. É quase insuportável, ainda assim, acredite, ele é o menor dos problemas.

Do Começo ao Fim Estrelinha
[Do Começo ao Fim, Aluisio Abranches, 2009]

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220 comentários sobre “Do Começo ao Fim”

  1. Jean, concordo plenamente com voce, mas vejamos uma coisa, nunca se viu ou ouviu falar de um amor entre dois irmãos homens de uma forma tão explicita como o filme. Acredito que a homossexualidade já não é mais um tabu, mas o incesto isso sim ainda é um grande tabu. Com relação a atuação dos protagonistas isso não vem ao caso, mas sim a falta de proficionalismo dos produtores do filme, faltou algo mais maduro para o tema, algo mais fundamentado, realista. Essa é a minha opinão.

  2. Chico, independente de você ter gostado ou não do filme (eu gostei) quero registrar aqui meus PARABÉNS a sua crítica.

    Extremamente bem fundamentada e descritiva de onde e como você percebe que poderia ser melhor.

    Críticos assim realmente fazem a diferença no aprimoramento da arte.

  3. Além das atuações constrangedoras, o que mais me irrita no filme é a sensação de que partiu-se do mote – “uma história de amor entre dois irmãos homens” – e pouco foi se fez além disso.

    Essa estética de comercial de sabonete, como você bem colocou, também reforçou em mim um senso de oportunismo gay bastante idiota – do tipo “meu filme tem dois homens lindos se beijando em um cenário de bom gosto, é claro que você tem que vê-lo”.

  4. Gostar de um filme só porque ele mostra gays felizes é muito pouco, não? Um filme que não se aprofunda em nada, que poderia ter um papel contestador importante, mas que morre na superfície. Um longa mal filmado, de plástico, ora… se nem o André Fischer gostou do filme (http://afischer.blog.uol.com.br/), o que mais falar?

  5. Chico, não estamos brigando, mas se não concordar com seu ponto de vista for briga isso já ocorreu desde minha primeira postagem. Não tenho que aceitar nada e vc também, não vou ficar num bate-boca, porém o que Gamgi quis te perguntar é se o público especifico existe e se a beleza não atrai, desde que não sejamos hipócritas pra aceitar. Bom eu acredito no filme e não me acho um cara muito burro, portanto a verdade é que existe gay, existe gay que ama gay, existe gay homem que troca de sexo e namora mulher, tornando-se algo sem verossimilhança, existe lésbica que se apaixona pelo namorado de infância, pelo padre, existe gente que se apaixona pelo cachorro e vive uma relaçõa estável. Querido Chico, não estamos aqui xingando como vc disse no twitter, estamos te dizendo que discutir hipoteticamente se o filme é filosoficamente possível é pequeno demais pruma crítica que deveria se ater a fundamentos de mudanças sociais atuais. Você deveria ter falado da péssima atuação do protagonista estrábico, deveria ter falado da direção, da luz errada ou do erro de edição, mas na boa querer que q realidade tenha um fundamento prismático caolho, pelo seu modo de ver, é no mínimo infantil.Acredito que possa inclusive ter um pai agora no interior de Sampa, do Rio ou da Noruéga que se identifique totalmente com o filme, já que a realidade é tão cheia de nuances múltiplas infinitas. bju.

  6. João Gamgi, o público específico de que eu falo é o público gay que só sai de casa para ver filmes com temática gay. Ou você vai ser hipócrita e dizer que esse público não existe?

    E sobre a verossimilhança, devo estar errado mesmo, dois irmãos que namoram, transam, se casam não devem chocar tanto o pessoal.

    Jean, não quero brigar com ninguém, mas esse filme não tem nada de conto de fadas. Ele pretende tocar numa ferida. Existe essa intenção. O próprio diretor fala isso. O problema é que ele toca na ferida, mas faz isso como se estivesse escondendo justamente o que quis mostrar. Na boa, tem outros filmes muito melhores que mostram um casal gay feliz. Isso não é mérito desse filme.

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