Doce Amianto

O espectador nem sempre é justo com o cinema. Do filme, em grande parte das vezes, é cobrado um posicionamento sobre o mundo, um pensamento sobre um tema, uma crônica dos tempos em que ele foi feito ou no qual a história se passa. História esta que, por sinal, limita as possibilidades criativas e centrifuga cineastas mais rebeldes, como se a rebeldia fosse apenas permitida dentro de um modelo pré-formatado. Um filme com temática homossexual naturalmente sofre mais com essas pressões. Como supostamente já mapeia um universo “diferente”, ao filme gay não parece ser permitido ir além da “revolução” de apresentar personagens “fora do padrão”: para ser aceito e reconhecido como um bom filme gay, a obra precisaria trafegar por um terreno dramaturgicamente e narrativamente seguro, como o correto e careta Milk, de Gus Van Sant, ou o acomodado Weekend,  de Andrew Haigh.

Em Doce Amianto, novo filme do coletivo Alumbramento, radicado no Ceará, seus realizadores não se preocupam em atender nenhuma demanda que não a de seu próprio fluxo de criação. Não existe a menor intenção de retratar uma situação, de dar voz a personagens marginais ou de fazer uma reflexão sobre uma questão específica. Não há também nenhuma vontade em fazer um filme fácil para o espectador comum, por assim dizer. Guto Parente e Uirá dos Reis (leia entrevista com a dupla aqui) abraçam os devaneios de sua personagem principal, sem nunca procurar contextos, dar explicações ou facilitar as coisas para quem não embarcar na atmosfera de delírio em que o filme opera. Os diretores determinaram que o universo em que vive a protagonista é um espaço de excesso e afetação. Esse conceito envolve absolutamente tudo no filme, desde a interpretação de Deynne Augusto, que nunca havia se travestido antes de fazer esse longa, até o cenário, ultracamp, colorido e idealizado.

Com uma proposta assim, seria de se esperar que Amianto fosse qualquer coisa, menos uma heroína romântica. E é justamente essa a melhor definição para a personagem: uma mulher – sabemos que se trata de uma travesti, mas isso nunca é colocado realmente em discussão – à procura de seu grande amor, um homem que a aceite como ela é. Os cineastas  não utilizam Amianto para representar ninguém, nenhuma classe, nenhuma condição. O que interessa para a dupla é como a protagonista mergulha na solidão por não conseguir encontrar um par. O cenário artificial traduz muito da personagem, que também se constrói para o mundo e para a materialização de seus desejos. O travestismo não é associado à prostituição ou ao espetáculo, duas linhas principais dos clichês ligados ao sexo do meio, mas é um canal para que Amianto exerça seus afetos. E como este filme é sobre a busca pelo afeto, por mais que o filme opere muitos tons acima, as escolhas dos diretores e o perfil da protagonista parecem bastante naturais, ou melhor dizendo, totalmente cabíveis.

Doce Amianto é uma variação de um poema que Uirá dos Reis fez para um amigo que tirou a própria vida. Mas, diferentemente do texto, no filme, Blanche, que seria esse amigo ausente, é uma espécie de fada madrinha para a personagem principal. É ela que visita Amianto em seus devaneios, que a consola em seu isolamento, que relativiza suas angústias. Blanche é vivida pelo próprio diretor-roteirista. Sua imagem também não se apega a uma definição apenas. O rosto extremamente maquiado e os cílios postiços longos contrastam com uma barba cheia, deixando claro que aqui não se procura um tom apaziguador, uma solução simples. Estamos num delírio audiovisual que encontra sua poesia própria. Sua pureza é resultado do encontro de uma personagem de melancolia discreta – porque Amianto não é triste, mas alguém à procura da felicidade – misturada a uma paleta de cores onírica que cria um universo completamente particular onde não há limites para amores, desejos, sonhos ou cinemas.

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[Doce Amianto, Guto Parente & Uirá dos Reis, 2013]

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