DOGVILLE
Dois dos meus melhores amigos viram Dogville antes de mim. Uma comparou a personagem de Nicole Kidman a Jesus Cristo, pela capacidade de abstração e, numa linguagem mais direta, de perdão. Exagero? Acho que não. O outro ressaltou o humanismo que o filme exala, o que superaria, na sua opinião, sua intenção clara de atacar a sociedade norte-americana. Exagero? Também não acredito. Demorei para elaborar um texto sobre o filme porque é difícil definir qual o maior dos sentimentos que o filme provoca. O último longa de Lars Von Trier é mais uma de suas polêmicas obras. Fazer polêmica é muito bom, todo mundo gosta, mas viver dela é realmente desesperador. O grande trunfo do cineasta dinarmaquês é que existe consistência nos seus filmes, mas sempre há algo a questionar.
Primeiro, a revolução. Lars Von Trier transborda criatividade, não há como duvidar. Ele cria uma cidade num galpão. As paredes das casas são marcas no chão onde atores encenam como num jogo de amarelinha. O resultado é de uma excelência visual encantadora, com uma câmera esperta, movimentada pelo próprio diretor, aproveitando detalhes, singelezas e, principalmente, atores. Os móveis espalhados pelo chão são as únicas referências tridimensionais para a encenação, o que exige um grande esforço dos atores. Este filme é deles. E há muitos bons atores aqui.
Lauren Baccall, desprovida da maquiagem que esconde sua idade, Harriet Andersson, provocando orgasmos para quem ama Gritos e Sussurros (72), e, mais que todas, Patricia Clarkson, que parece que está se tornando uma das maiores coadjuvantes do cinema atual. E há Paul Bettany. Num linha muito tênue entre a ingenuidade e a perversidade, o ator nos entrega um papel difícil de fazer – e muito bem feito. O conjunto de atores de Dogville funciona com exatidão. Mais exatidão que o filme. E mais exatidão que a protagonista. Não que seja culpa de Nicole Kidman, que é uma boa atriz.
O problema é o tratamento que sua personagem recebe do roteiro. A estranha fugitiva abrigada na cidade pequena passa por tantas provações impostas por seus moradores que começa a questionar se vale a pena se esconder. Mas não é bem assim. Não há questionamento. Há apenas o perdão e o perdão. Perdão que caminha para uma conclusão que não tem o tom do filme. Von Trier começa indagando a capacidade de aceitar o que vem de fora, o que é diferente, mostrando o poder de crueldade escondido em cada pessoa. E, além disso, a capacidade de resistência de cada um. Mas as três horas de filme, ou quase isso, nos trazem um final que parece um momento Pilatos do diretor. Um momento em que Von Trier joga os questionamentos pro alto e resolve não chegar a nenhuma conclusão.
O filme abdica de uma tomada de partido e isso é ruim para um filme que se pretende muito. Os filmes de Lars Von Trier, no geral, pretendem muito. O diretor, que lança uma anunciada revolução no cinema moderno e depois de fazer um filme (ruim, Os Idiotas 98) a manda sete palmos abaixo da terra, termina fácil, com a solução mais imediata para se resolver um problema. Se esse foi o único caminho para concluir a obra, qual o sentido de questionar – com tanta ênfase e tanto explendor visual – a ordem, as pessoas, o pensamento de uma sociedade inteira? Se o cineasta não termina seus questionamentos amarrando um desfecho para sua história, esse texto também não vai chegar a conclusão alguma. Apenas a de que Dogville fica em algum lugar do caminho.
P.S.: Dogville passou em cinema de multiplex, além do gueto das salas de arte. Definitivamente não era o local adequado. Pior que não ver tudo o que um filme tenta oferecer é assiti-lo ao lado de quem não sabe assistir cinema. Cerca de vinte pessoas levantaram do cinema no fim de tarde do sábado passado. Talvez não estivessem preparados para tanta experimentação, talvez quisessem apenas ver um filme da Nicole Kidman.
Dogville
Dogville, Dinamarca/Estados Unidos, 2003
Direção e Roteiro: Lars Von Trier.
Elenco: Nicole Kidman, Harriet Andersson, Lauren Bacall, Jean-Marc Barr, Paul Bettany, Blair Brown, James Caan, Patricia Clarkson, Jeremy Davies, Ben Gazzara, Philip Baker Hall, Thom Hoffman, Siobhan Fallon, Zeljko Ivanek, Udo Kier, Chloë Sevigny, Stellan Skarsgård, Tilde Lindgren, John Randolph Jones, Cleo King, Miles Purinton, Bill Raymond, Shauna Shim, Evelina Brinkemo, Anna Brobeck, Evelina Lundqvist, Helga Olofsson e John Hurt (narração).
Produção: Vibeke Windeløv. Fotografia: Anthony Dod Mantle. Edição: Molly Marlene Stensgård. Direção de Arte: Peter Grant. Figurinos: Manon Rasmussen. Música: Vivaldi.