Doce Amianto é um adorável delírio, um filme que faz renascer a fé num cinema brasileiro de pensamento livre. Os diretores, roteiristas e montadores Guto Parente e Uirá dos Reis, que também é ator do filme, bateram um papo comigo e tentaram explicar onde sua personagem principal se encaixa nesta ponte entre o mundo real e a fantasia colorida. O longa do coletivo Alumbramento estreia nesta sexta-feira.
Doce Amianto me parece um filme sem pudores. Vocês fizeram exatamente o que queriam?
Uirá: Fizemos o filme que queríamos sim, e é verdade, ele é despudorado.
Guto: A gente estava se lixando para qualquer tendência estética ou o que se espera de um filme contemporâneo. Aliás, me parece que o cinema contemporâneo está mais cheio de regras de etiqueta do que nunca. Muito cinema de grife. O nosso filme é démodé. E só porque é. Naturalmente é.
Como vocês chegaram à personagem principal? De onde surgiu Amianto?
Uirá: Num estalo, através de um poema meu (Solilóquio/Amianto) que fiz para um grande amor, Marcelo Bittencourt, amigo e poeta, que se matou em outubro de 2010. No poema, eu sou Amianto, ele é a Blanche, a amiga morta que é sempre evocada, mas que nunca volta. No filme, a Blanche sequer é evocada, sua ausência sequer é sentida: ela está lá e protege Amianto, como uma fada madrinha. Amianto é uma substância terrível, cancerígena, algo que não deveria existir e, sendo assim, deveria ser o nome dessa personagem doce, que vive num mundo de fantasia, mas que se depara sempre com o “real”, que preferiria que alguém como ela não existisse, que ela sumisse, talvez morresse. Mas ela não morre e muito menos ela se mata: ela chora e ela sorri. Ela é louca e, na sua loucura, o que importa é o amor. O amor é a grande utopia dos extremamente solitários. “Preciso mudar o mundo embora prefira um segundo contigo, meu amor”, ela diz.
Guto: Quando o Uirá me apresentou sua bebê Amianto, fruto dessa poesia intensa e visceral e incrível que vem dele, eu me apaixonei imediatamente.
A ideia era, desde o começo, trazer um homem para o papel?
Uirá: Sim, desde o começo um homem, e desde o começo o Deynne. Somos muito íntimos e só ele poderia fazer – e fazer da maneira que fez. Ele é um poeta, alguém em total sintonia com sua própria vida, com quem é muito fácil ser despudorado. Só ele poderia ser a Amianto.
Guto: E o Deynne nunca tinha se montado antes.
A atmosfera de delírio é uma das coisas mais fascinantes que o filme oferece porque ele opera sempre num ambiente libertário. Esse nem sempre é um terreno seguro. Como foi manter esse fluxo na prática?
Uirá: Foi fácil, foi só ler o roteiro e obedecê-lo (risos). O roteiro foi escrito em delírio, ele queria ser delirante. A dor nos faz delirar, mas ele queria mais: o roteiro queria rir, rir de si, de mim, de nós, de nossa loucura toda! Ele queria ser libertário dizendo “sim!” para tudo e esquecendo qualquer dogma ou opressão. Então nós escrevemos, decupamos e seguimos o roteiro, com poucas fugas, muito menos fugas e improvisos do que se pode imaginar.
Guto: Foi o filme menos improvisado que eu já fiz. Ao mesmo tempo extremamente libertário. O que desmistifica dicotomias como rigor x espontaneidade ou organização x liberdade. Decupamos o filme de maneira bastante minuciosa. Pensando sempre em como encontrar a forma justa com os sentimentos e emoções da personagem, como construir imagens que expressassem com verdade seu mundo interior.
Vocês trabalham com o excesso, tanto nos elementos visuais e simbolismos quanto nas interpretações. Existiu um referencial ou vocês partiram do zero?
Uirá: O ponto de partida foi a literatura e a vida, tanto para mim quanto para o Guto. O roteiro vem de um conto e de um poema, ambos alucinados e impregnados de vida excessiva, como a nossa é.
Guto: Esses excessos transbordam de mim e do Uirá. As referências podem ser conscientes ou inconscientes, mas elas sempre existem e junto com tudo que a gente absorve durante a vida se materializam no que a gente faz. Algumas coisas são mais claras de onde vêm, a maioria não. Prefiro as que não são.
Lembrei de Morrer como um Homem, de João Pedro Rodrigues, algumas vezes ao longo da projeção de Doce Amianto. Existe algum tipo de influência ali?
Uirá: Guto também pensou em Morrer como um Homem quando mostrei a Amianto pra ele, tanto que me apresentou a esse filme incrível e a esse diretor que é como um Deus! Mas até a pré-produção do filme, eu não o conhecia. Hoje eu queria me casar com ele. Mas pensei muito, desde que decidi escrever o roteiro, pensei muito no filme que é um dos que mais assisti em minha vida, desde que gravei da televisão no final da minha infância: Sonho de Valsa, da mestra total Ana Carolina. Tive que puxá-lo todo de minha memória, do meu coração, pra poder narrá-lo para mim mesmo porque eu não assistia a esse filme desde os doze ou quinze anos. Com ele realmente me senti capaz de criar uma narrativa que respeitasse em imagem o que na poesia poderia ser metáfora e o absurdo e liberdade do filme vem daí, vem do fato de esse filme querer ser um filme, um delírio, uma canção e um poema. E vem do fato de ele ser um filme filho do Sonho de Valsa, da Ana Carolina.
Guto: Gosto muito de Morrer como um Homem, apesar de não amar o João Pedro Rodrigues como o Uirá (rs).
Que outras influências vocês poderiam citar?
Uirá: Kenneth Anger, Andy Warhol, Tod Browning, Halldór Laxness, Mario de Andrade, Ryan Larkin, Derek Jarman, João Cabral de Melo Neto, o século XX e sua música, o Youtube, nossas vidas, nossos amigos, os bares puteiros onde se bebe sozinho até chorar e sair tropeçando em si próprio, o mar, as falésias e as estradas que vão dar no sertão, qualquer sertão de qualquer lugar.
Guto: John Waters!
Que relação dá pra fazer entre Doce Amianto e os outros filmes do Alumbramento?
Uirá: É um filme muito honesto e arriscado, um filme que não quer conhecer limites senão em si. Também é um filme bem realizado e corajoso como todos os outros filmes da Alumbramento. A diferença é que esse filme é uma bicha louca, mas ele se utiliza das mesmas substâncias de Sábado à Noite (risos).
Guto: Juntou muita gente incrível de Fortaleza. Foi realizado com pouco dinheiro e muito afeto. O set de filmagem foi divertido e prazeroso. Todas essas são características de todos os filmes da Alumbramento. Pelo menos até agora e espero que continue sendo assim. Menos o que diz respeito ao pouco dinheiro. Podia passar a ser muito dinheiro e muito afeto.
Vocês conseguiriam listar seus dez filmes favoritos?
Uirá: Ai… Tem que fazer isso? Detesto esse tipo de brincadeira, mas vamos lá… Afora a trilogia da Ana Carolina (que tem Mar de Rosas” (1977), Das Tripas Coração (1982) e Sonho de Valsa (1987), tem o Throw Away Your Books – Rally In The Streets, do Shûji Terayama, Viver, do Akira Kurosawa, The Adventures of Iron Pussy, do Apichatpong Weerasethakul, Decamerão, do Pier Paolo Pasolini, A Idade da Terra, do Glauber Rocha, A Montanha Sagrada, do Alejandro Jodorowsky, Meshes of the Afternoon, da Maya Deren, Sábado à Noite, do Ivo Lopes Araújo, Casa da Vovó, do Victor de Melo e Vaidade, da Thaís Alberto. Queria colocar também o Nunca Fui Beijada, com a Drew Barrymore, mas não pode, né? Queria colocar muitos outros!! Metrópolis, do Fritz Lang! Posso responder no seu lugar também, Guto? (risos)
Guto: Já que o Uirá roubou 3 da minha lista (risos), vou fazer diferente. Uma lista de 10 diretores preferidos nesse exato momento da minha vida. Pode ser? Abel Ferrara, Brian de Palma, Buñuel, Carlão, Cronenberg, Fassbinder, Fritz Lang, Hitchcock, Jean-Claude Brisseau, John Carpenter, Leos Carax, Mario Bava, Nicholas Ray, Samuel Fuller, Walter Hugo Khouri.
Que filme lindo. E adorei a entrevista. Parabéns, Chico.