Pé na estrada e alguma melancolia

O status quo, quebrado por uma carta. A vida ganha nova dimensão, novo prisma, novas possibilidades. Pé na estrada numa busca cujo objetivo pode ser justamente a busca em si, o movimento, a consciência da imobilidade de até então. A solidão de Don Johnston sempre esteve lá. Faltava só alguém dizer. E alguém disse. É então que ele percebe que tem a chance de continuar, de perpetuar, algo assim meio orgânico (inclusive mais orgânico que romântico). A busca pelo futuro se dá no passado ou que no ficou dele. Jarmusch não tinha outra maneira se não abraçar a melancolia, com a habilidade de não transformá-la em prisão.

Curiosamente, Flores Partidas tem um ponto de partida muito próximo ao do novo filme de outro diretor, Wim Wenders, o belo (e injustamente massacrado por alguns) Estrela Solitária. A busca por um filho desconhecido toma, em cada filme, rumos diferentes, mas cheios de semelhanças. Nos dois filmes, importa menos o encontro com o filho e mais o terremoto que isso provoca no protagonista, o quanto ele passa a questionar sua relevância. Nesse aspecto, Jarmusch é mais feliz do que Wenders porque, se Sam Shepard tenta transitar entre o sóbrio e o clown, Bill Murray não apenas faz isso, mas mora nesse intervalo.

A redescoberta de Murray no fim dos anos 90 foi uma das mais belas do cinema recente. É um ator circular, raramente sai da forma que vemos em seus últimos filmes, mas sempre consegue delicadeza. Aqui, repete trejeitos e fórmulas, amplificando sua releitura de Chaplin, mas concede tanta graciosidade a sua personagem que é impossível não se apaixonar por Don Johnston. As piadinhas que enfeitam toda a narrativa só são possíveis porque é ele que está em cena. E só existem em função dele. Murray é a tradução perfeita do que pretende Jarmusch. É o palhaço que se revela melancólico. Aquele que implode para não perder o sorriso. E que, quando tenta explodir, numa das cenas mais lindas e tristes do ano, dá de cara com o fato de que o mundo nem sempre permite ser amado.

Flores Partidas
Broken Flowers, Estados Unidos/França, 2005.
Direção e Roteiro: Jim Jarmusch.
Elenco: Bill Murray, Sharon Stone, Frances Conroy, Jessica Lange, Tilda Swinton, Julie Delpy, Jeffrey Wright, Mark Webber, Chris Bauer, Alexis Dziena, Larry Fessenden, Suzanne Hevner, Pell James, Christopher McDonald, Chloë Sevigny, Heather Simms.
Fotografia: Frederick Elmes. Montagem: Jay Rabinowitz. Direção de Arte: Mark Friedberg. Música: Mulatu Astatke. Figurinos: John A. Dunn. Produção: Jon Kilik, Jim Jarmusch, Jean Labadie e Stacey E. Smith. Site Oficial: Flores Partidas.Duração: 105 min.

rodapé: a única coisa boa do meu fim-de-semana de plantão foi dar umas espiadas em Simplesmente Amor, de Richard Curtis, exibido no Telecine. O filme é maravilhoso mesmo, sem vergonha de seus clichês (e ele dobra muitos deles), com um elenco que acredita muito no que está fazendo e algumas cenas lindas de tão bobas, de tão possíveis.

nas picapes: God Only Knows, Beach Boys.

Comentários

comentários

26 comentários sobre “Flores Partidas”

  1. O filme é lindo, um dos melhores do ano – tá certo que eu sou meio fã do Jarmusch (o que é interessante, já que tá todo mundo indo ver o filme por causa do Murray), então fica um pouco suspeito. A sequencia final é explosiva, linda mesmo. E eu gostei de Don’t come knocking, mas a tradução, me desculpa, é horrorosa. até.

  2. Chico, tô melhorando, finalmente.

    Tô achando seus últimos textos muito bons, inspirados, um grande prazer poder ler.

    Andei afastado de tudo… fui substituído no teatro, locadora só por telefone ou sábado, cinema nem pensar… daí essa semana tô retornando.

    Não votei nas escolhas do mês e do Festival da Liga porque realemnte perdi o prazo. Mas a lista dos anos 90 vai essa semana.

    Abraço pra ti.

  3. credo,chico! como assim nota minima? closer é ruim só na sua televisão. ou melhor, na sua sala de projeção! cara, os dialogos acidos e toda aquele bate-pronto foi oq mais conquistou-me e foi tb oq vc mais odiou!rs….bem, eu vi o anti-heroi americano tb! achei uma merda. acho q eu deveria estar rico pois sou melhor fazendo oq ele faz…..mas agora eu ja to entrando no lado pessoal…rs . nao posso discutir o cara em si, tenho q falar do filme…. deixa eu ir lá ver oq vc achou dele. (deve ter amado….rs)

  4. q pecado,chico! fui closer somente nesta semana! q vergonha… como alguem pode passar tanto tempo sem essa experiencia? calma aí…vou lá ver oq vc falou…a gente geralmente descorda,rs.

  5. Marcos, eu vi no Festival de Cinema do Rio. Tanto este quanto “Lady Vingança”, respectivamente, o que vem antes e depois de “Old Boy” na trilogia do Chan Wook Park. Os filmes nunca foram lançados no Brasil. Uma alternativa é tentar baixar na internet.

  6. Chico, como faço para assistir “Sympathy for Mr. Vengeancer” do diretor de “Old Boy”. Soube que o filme é muito bom mas não chegou aqui na Bahia (nem no circuito alternativo). Na GPW também não tem…
    Abraço!

  7. Plagiando o Marcelo V., momentos Google: “se a terra fosse invadida por alienígenas” (algum curioso da ficção-científica), “filme gordas anão” (algum curioso da ficção entre espécies) e “fantasma da ópera, fim da história” (algum curioso que dormiu no meio do filme).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *