Reprise do último capítulo

Há algo de extremamente presunçoso em se dispor a fazer um filme sobre as origens de um país que não é o seu… ou não? Pois bem, Lars Von Trier já está no segundo e todo mundo bem sabe que este não será o último. Ora, a questão não é falar mal desse ou aquele país, desse ou daquele povo, isso existe desde que o mundo é mundo. O que eu questiono é o quão abalisado está o diretor para ir além do questionamento, ir revelar as raízes do problema. E o problema aqui é a visão estilizada dos Estados Unidos e dos norte-americanos como o mal maior, o câncer do mundo. Convenhamos que os Estados Unidos, por todo seu papel histórico e econômico, é um alvo fácil demais. Mas Von Trier, além de atacar esse alvo, como fizeram Michael Moore e Osama Bin Laden, se dispôs a explicá-lo ou, como parece querer o diretor, entendê-lo.

Diante dessa constatação e da certeza de que boa parte do intento das obras do cineasta tem claras motivações polemizadoras, Dogville não seria suficiente para saciar essa sede? Porque lá já existe o que na visão do diretor seria o fim do perdão, uma explicação para o comportamento intoletante da sociedade norte-americana, formada, digamos, de uma maneira selvagem. A experiência da personagem central que termina por renegar a pureza em troca de uma natureza perversa exaltada, revelada, desmascarada pelo meio já não seria um fim por si só? Parece que não porque Grace, ao contrário do que tudo indicava, resolve não tomar outro caminho. A vilania é colocada de lado para, ora, que a experiência seja repetida, reprisada, reforçada. E, assim, para que mais uma faceta da formação do povo norte-americano seja revelada.

Quando Von Trier se predispõe a esse replay seu filme perde toda a força que poderia ter. Se Dogville tinha na forma um de seus maiores alicerces, Manderlay, em sua condição de parte dois, surge com zero de idéias na criação visual. Os jogos de luz, a câmera crua, e o cenário teatral perderam completamente o efeito do choque do filme anterior. São mais do mesmo. As personagens, por mais que haja esforço de alguns atores, também são menos interessantes do que os de antes – e não há Paul Bettany ou Patricia Clarkson. Mas é o texto o mais fraco. Se as provações por que passou Grace e sua capacidade de resistência a elas eram o que mais interessava antes (ou pela repulsa ou pela capacidade de envolvimento), agora não há mais espaço para provação alguma, há apenas a perplexidade – óbvia – diante de uma humanidade subnutrida.

Manderlay
Manderlay, Dinamarca/Holanda/Inglaterra/Suécia/França/Alemanha, 2005.
Direção e Roteiro: Lars Von Trier.
Elenco: Bryce Dallas Howard, Isaach De Bankolé, Willem Dafoe, Danny Glover, Michael Abiteboul, Lauren Bacall, Jean-Marc Barr, Virgile Bramly, Ruben Brinkmann, Doña Croll, Jeremy Davies, Llewella Gideon, Giny Holder, Emmanuel Idowu, Zeljko Ivanek, Wendy Juel, Udo Kier, Rik Launspach, Suzette Llewellyn, Charles Maquignon, Chloë Sevigny, Mona Hammond, John Hurt (narração).
Fotografia: Anthony Dod Mantle. Montagem: Bodil Kjaerhauge e Molly Marlene Stensgard. Direção de Arte: Peter Grant. Figurinos: Manon Rasmussen. Produção: Vibeke Windelov. Site Oficial: Manderlay.Duração: 139 min.

nas picapes: Heroes, David Bowie.

rodapé revoltado: não é extremamente chato – e até mal educado – quando alguém, um amigo seu – ou mais de um – começa a fazer piada da quantidade de filmes que você vê e de quanto tempo você dedica a eles, os filmes, em vez de fazer programas como tomar uma cerveja, ir à praia ou ir a uma boate? E quando resolvem discutir o que você deveria ter feito nas suas férias em vez de ir a mostras e festivais, uma coisa da qual você gosta – mas que para eles pouca importa porque o que conta mesmo é o que eles gostam. E isso é apenas o marco zero para que eles discutam – na sua frente, inclusive – a sua sanidade. Isso mesmo. A sua sanidade é colocada em cheque porque, em vez de ir pra um barzinho, para a praia, para boates, você vai ver filmes. Pois é, eu realmente acho extremamente chato – e até mal educado.

Comentários

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27 comentários sobre “Manderlay”

  1. Quis dizer “crítico” no sentido da palavra, não como profissão. Todos somos críticos, é impossível viver sem ter nada a falar de alguma coisa. E o que escrevi, foi uma visão das pessoas, e não uma indireta.

  2. Pois é, Ícaro e Ailton, eu não acho nada disso absurdo, só que não é o que eu gosto de fazer. As pessoas realmente não sabem muito bem lidar com as diferenças. Gosh, será que “Crash” está certo? É o fim do mundo.

  3. Tiago, eu não discuto isso, concordo plenamente com você, mas ainda assim acho que o Von Trier não é a pessoa mais adequada para este papel. Eu li esta entrevista e acho que ela serve mais para justificar o fato de ele fazer a trilogia do que para qualquer outra coisa. Isso inclusive talvez seja o motivo dela. Mas, me fale o que vc achou do filme? Vc não acha que ele é muito parecido com “Dogville”? Não parece mais do mesmo? Meu maior problema com o filme é que eu acho ele um repeteco.

  4. Chico, olha ao redor: quanto da nossa cultura é norte-americana? Eu acho que uma boa parte. Por isso acredito que o von Trier tem todo o direito de falar dos Estados Unidos. Eu li até uma entrevista bem interessante em que ele dizia que queria o direito de voto para eleger governantes norte-americanos. Não seria má idéia, já que um Bush acaba influenciando na vida de todo mundo.

  5. Engraçado mesmo esse lance do nosso vício..Por isso que eu pouco falo sobre cinema com o pessoal aqui do trabalho. A não ser que perguntem. Mas eu só converso com quem se interessa pelo assunto, ou quando tem algum filme de apelo popular e de qualidade que eu acho que certas pessoas vão gostar. E entendo perfeitamente o que o Ícaro falou: tem gente que passa o fim de semana inteiro bêbado. Isso sim é tempo desperdiçado.

  6. Chico, ainda não vi “Manderlay”, mas a expectativa é imensa (não é segredo para ninguém o quanto gostei de “Dogville”). Sobre o “rodapé revoltado”, sei be o que é isso quando chega a segunda-feira e eu comento com alguns amigos que – por exemplo – fui ao cinema na sexta à noite, emendei 3 sessões no sábado e mais 2 no domingo. Quando dizem que é absurdo, eu simplesmente os lembro que, para mim, absurdo é começar a tomar cerveja na quinta à noite e só parar na madrugada de segunda. É isso. Abraço.

  7. Esquenta não, o que importa é o que gosta. Assim como vc achou presunçoso alguem fazer um filme de um pais de origem que não é sua, é também fazer comentários sobre o jeito das pessoas…

    A vida é assim, todo mundo achando alguma coisa da vida de alguém, assim como você. Como pode reparar, vc não é exceção. Todo crítico corre o risco de ser criticado! É o Mundo mais do que Real.

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