A 42ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo chegou ao fim e o filme francês Amanda, de Mikhaël Hers, foi o meu favorito entre os mais de sessenta títulos que vi neste ano. O longa não ganhou muitos prêmios, mas trata com tanta delicadeza de um tema tão difícil de ser materializado sem clichês, a mistura entre amor e responsabilidade, que superou os vários bons títulos exibidos nesta edição. Foi minha décima nona Mostra, que pela primeira vez não teve uma grande retrospectiva em sua programação, mas que exibiu os vencedores de quatro dos maiores festivais de cinema do mundo: Cannes (Assunto de Família), Veneza (Roma), Berlim (Não Me Toque) e Locarno (Uma Terra Imaginada). Dos quatro, apenas o premiado no festival alemão não entrou na minha lista de favoritos.
Meu filme favorito da Mostra de 2018:
Amanda ½
idem, Mikhaël Hers, 2018
Não leia a sinopse deste filme. O resumo faz que ele pareça muito menor e mais óbvio do que ele é. De óbvio, “Amanda não tem nada. Mas, de complexo, também não. Mikhaël Hers não entende a vida à base da relação de causa e efeito, embora este filme tenha, sim, um grande evento definidor de praticamente tudo. Hers se apropria de um tema grandioso, um assunto do momento, para focar no íntimo de seus personagens e mostrar como o externo nos revela por dentro. Amanda, no final das contas, é sobre crescer. Sobre estar preparado ou não para enfrentar pequenas e grandes tragédias. Sobre como pode ser doloroso continuar, seguir em frente, puxar para si, assumir, acolher, tomar a responsabilidade. Seu diretor parece acreditar que nossa essência sempre está ali e que a generosidade talvez seja o que carregamos de melhor e fazer a coisa certa o nosso maior desafio. Quando isso acontece, não importa o tamanho da dor, o amor vence.
Meu Top 10 da Mostra de Cinema de SP 2018:
1 Amanda
2 Roma
3 Assunto de Família
4 Uma Terra Imaginada
5 Em Chamas
6 Eu Não Me Importo Se Entrarmos para a História como Bárbaros
7 Infiltrado na Klan
8 A Valsa de Waldheim
9 Grass
10 3 Faces
menções honrosas: Verão, Imagem e Palavra, Ray & Liz, Temporada, Belmonte, Los Silencios, A Rota Selvagem, Sol Alegria, Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos e Guerra Fria.
Seguem resenhas para a maior parte dos filmes que vi, em ordem alfabética:
Assunto de Família
Manbiki Kazoku, Hirokazu Kore-eda, 2018
Que laços que nos conectam com o outro? O que faz da relação entre duas pessoas uma relação verdadeira? O que é família? Hirokazu Kore-eda mergulha profundamente em perguntas um tanto óbvias para chegar a conclusões um tanto óbvias percorrendo os caminhos menos óbvios possíveis. Assunto de Família é uma coleção de tristes tópicos que nos diz mais sobre a alma humana do que qualquer drama familiar contemporâneo. O amor se revela nos detalhes, escondido, muitas vezes soterrado, pela vida. Os protagonistas curam sua solidão caçando companheiros, parceiros, cúmplice. A casa cheia é cheia de pessoas desiludidas, amarguradas e abandonadas que buscam refúgio e colo em pessoas desiludidas, amarguradas e abandonadas. Os caminhos não são fáceis, como a vida não é fácil, principalmente para quem não segue as regras. E o método do diretor, o do retrato do cotidiano, o da observação dos detalhes, é fundamental para que o elo entre os personagem se estabeleça espontaneamente. Kore-eda fecha o foco tanto, tantas vezes, que parece chegar à essência daqueles relacionamentos, que partem da autopreservação para a manutenção do clã, com direito a todos os desacertos e fragilidades que a vida pode nos acometer.
Azougue Nazaré
idem, Tiago Mello, 2018
O grande mérito do filme é o mergulho que ele proporciona na Zona da Mata pernambucana e no universo do Maracatu. O cineasta, em sua estreia em longas, consegue traduzir a atmosfera da vida nos arredores de uma pequena cidade nordestina e apresenta honestamente seus protagonistas – a maioria surpreendemente muito natural em sua primeira performance em frente às câmeras. Tudo que é mais documental funciona plenamente em “Azougue Nazaré”, sobretudo quando Tiago Melo filma os duelos de versos dos atores/personagens ou quando reproduz cenas cotidianas. No entanto, o filme, que tem um trabalho de fotografia com alguns momentos bem bonitos, é mais frágil quando tenta costurar uma história, criar um evento para desenvolver. Além deste novo conflito entrar um pouco tarde na narrativa, sua construção é meio artificial e as questões lançadas são tratadas de forma banal e não se resolvem satisfatoriamente.
A Balsa
Flotten, Marcus Lindeen, 2018
De onde surge a violência? Qual a origem do ódio? A ideia de confinar homens e mulheres de origens, etnias, classes sociais e religiões diferentes e forçá-los a conviver hoje pode parecer premissa do mais banal reality show da TV, mas em 1973 era experiência científica mesmo. O documentário de Marcus Lindeen resgata os sucessos e fracassos da aventura antropológica do pesquisador espanhol Santiago Genovés, que reuniu 11 pessoas, ele incluso, numa barca que cruzou o Oceano Atlântico. A ideia do cientista era mapear o surgimento dos conflitos entre os desconhecidos e traçar ideias para a “paz mundial”. Num cenário que reproduz a embarcação, 43 anos depois, os sete passageiros que ainda estão vivos relembram a experiência, amparados por um farto material gravado in loco à época. Lindeen administra bem as imagens de arquivo, criando, com a costura dos depoimentos quase que uma estrutura de suspense, mostrando que, na ânsia de provar sua teoria, o próprio cientista experimentou o que tentava associar deliberadamente a seus estudados. Bem interessante.
Belmonte
idem, Federico Veiroj, 2018
A ideia central em Belmonte é a da quebra das expectativas. Nada realmente segue seu rumo “natural” no filme: nem na trama propriamente dita, nem na maneira com que o diretor conduz esta história. O personagem-título é um pintor de meia-idade, especialista em quadros que mostram corpos masculinos nus, que se divide entre os preparativos de uma importante exposição e a relação especial com a filha, que mora com sua ex-esposa, que, por sua vez, está grávida. Se o protagonista está meio perdido em relação a sua arte e a seus laços afetivos, o cineasta Federico Veiroj evita usar essa situação emocional como condutor narrativo e, principalmente, se afasta da manipulação sentimental. O tom sempre é baixo, discreto e honesto, o que nos aproxima da intimidade do protagonista. Nenhuma das crises do personagem acontece em linha reta, sempre sendo atropeladas ou por outros acontecimentos e preocupações ou pela própria montagem do filme, que frequentemente transporta o ator Gonzalo Delgado, ótimo, para outra cena assim que as coisas parecem seguir um caminho mais tradicional. Nesse sentido, o filme reflete bem a confusão do personagem, sua falta de foco e sugere, sem julgamento ou certeza, que estas indefinições acontecem em vários planos de sua vida.
A Casa que Jack Construiu
The House That Jack Built, Lars Von Trier, 2018
Lars Von Trier é um ególatra mesmo. Numa cena no terço final de A Casa que Jack Construiu, ele faz um pout-pourri de sua obra. Literalmente. Usa imagens de vários de seus filmes, como exemplos de uma explicação — que parece fazer muito sentido para ele próprio — sobre o porquê da crueldade presente nas obras de ficção. Nas dele, pelo menos. É quando o cineasta sugere mais explicitamente que este novo longa é quase que um direito de resposta às críticas de seus detratores. Uma justificativa. O método aplicado não é muito diferente do que se vê em todos os seus últimos trabalhos: mostrar graficamente e com riqueza de detalhes que o homem não escapa de suas tendências violentas, seja como vítima, seja como agressor, seja fisicamente, seja em sua essência. Mas a trama sobre o serial killer interpretado por Matt Dillon, que parece conscientemente caricato e narra para alguém — que ainda irá se apresentar — alguns de seus assassinatos, numa espécie de coleção de episódios de Jogos Mortais, se afasta da banalidade à medida em que tenta abraçar uma tentativa de grandiosidade digna do diretor, flertando com uma espécie de religiosidade torta, de maldição metafísica. Embora acredite que tenha ido ao fundo do poço, não sai da superficialidade. O filme que, novamente, parece desnecessário, gratuito, embora o dinamarquês acerte na atmosfera em alguns momentos.
Cassandro, o Exótico!
Cassandro, the Exotico!, Marie Losier, 2018
Marie Losier é francesa, mas trabalha em Nova York como curadora e cineasta há mais de 20 anos. Apesar de ter 15 títulos na bagagem, a maioria curtas, a diretora ainda parece engatinhar no comando de Cassandro, o Exótico, o que é extremamente frustrante já que Cassandro, o protagonista do documentário, é – literalmente – um personagem pronto. Lutador do vale tudo mexicano há 26 anos, Cassandro, além de homossexual assumido, se apresenta em roupas brilhantes, laquê e maquiagem. É uma diva dos ringues. E um excelente showman/lutador também. Losier, no entanto, não faz muito além de um registro convencional – e até preguiçoso – do personagem. O resultado é acomodado e artificial, quando ela tenta pesar no emocional sem justificar o caminho até a emoção. Cassandro faz tudo sozinho, é ele quem garante o interesse no filme. É ele quem brilha, quem diva, quem arrasa. Cassandro, shantay you stay.
As Ceifadoras ½
The Harvesters, Etienne Kallos, 2018
Em seus altos e baixos, As Ceifadeiras é sobre manter-se vivo. Basta que um elemento novo chegue a sua vida para que o jovem fazendeiro Jannos, que tanto luta para ser um filho exemplar e um herdeiro merecedor das terras dos pais, enxergue a fragilidade de suas certezas e do que construiu como escudo e esconderijo. Se Jannos se refugia numa vida inventada, negando seus desejos e apostando em laços que nem sempre são reais; Pieter, o irmão adotivo que desequilibra seus planos, usa a violência como forma de se comunicar. Em seu longa de estreia, Etienne Kallos descreve o cotidiano dos afrikaans, a minoria étnica branca ensimesmada da África do Sul, como um túmulo para as individualidades. Nem sempre o cineasta consegue se aprofundar o quanto queria na intimidade dos personagens, mas, mesmo assim, a construção de Jannos é mais complexa e misteriosa do que a de Pieter, que segue um padrão de personagem mais óbvio. Os dois garotos são bem bons.
Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos
idem, João Salaviza e Renée Nader Messora, 2018
A brasileira Renée Nader Messora tem um trabalho de anos junto à tribo dos Krahô, que fornece o elenco, o cenário e o roteiro do longa que divide com o companheiro português João Salaviza. A dupla tinha acabado de entregar o longa Montanha, dirigido por João e codirigido por Renée, e ambos resolveram procurar refúgio em uma das aldeias dos Krahô. Lá, organizaram uma série de atividades em que recolheram o material que seria o ponto de partida para Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, a história de um feitiço e de um ritual de despedida. A partir daí, colocaram de pé um roteiro que, entre o documentário e a ficção, reorganiza os fatos, nas palavras dos dois, resgata as tradições da população indígena e ainda retrata o processo de exclusão que essa mesma população sofre com o decorrer dos anos. O casal Ijhãc e Kôtô Krahô, que protagoniza o filme, empresta para esta aventura antropo-sociológica, fantástica e política uma ingenuidade e uma naturalidade que transformam qualquer tom panfletário em peça simples, singela e única.
Cléo & Paul
Allons Enfants, Stéphane Demoustier, 2018
No belo Benzinho, Gustavo Pizzi e Karine Teles recrutaram os próprios filhos gêmeos para interpretar os rebentos da personagem da atriz. O resultado: duas crianças completamente à vontade, roubando a atenção em cenas espontâneas que emprestam ao filme a naturalidade pretendida pelo ex-casal. O francês Stéphane Demoustier teve uma ideia parecida, mas mais ousada: usar seus próprios filhos, de 3 anos, como protagonistas de um filme em que apresentaria o mundo aos olhos das crianças. A premissa é bem simples, até para se adaptar ao improviso da duplinha: quando a pequena Cléo se perde num parque e passa a vagar por Paris, seu irmão Paul tenta procurá-la. Ela encontra uma mulher que tenta ajudá-la enquanto encaixa a menina em sua rotina e ele sai batendo perna, conversando com adultos e crianças. O contato com os estranhos atiça a curiosidade dos meninos à medida em que eles tentam lidar com as sensações de saudade e solidão, acompanhados de perto pela câmera do pai, que parece apenas ter passado as coordenadas para os dois e quase não interfere na ação.
Diamantino ½
idem, Gabriel Abrantes, Daniel Schmidt, 2018
Diamantino se passa no universo paralelo da farsa e da caricatura. O personagem central é uma clara alusão ao craque Cristiano Ronaldo, mas também a todo esse mundo artificial dos jogadores de futebol ao mesmo tempo milionários e de inteligência limitada, o que o filme não tem medo de denunciar, salvaguardado pela fantasia que envolve, embala e camufla a trama. A falta de sutileza do humor, no entanto, determina para quem o filme realmente funciona. Muitas vezes, o limite entre a liberdade criativa e a grosseria é tênue demais e a ironia parece brincadeira de criança, mas como os diretores parecem não ter nenhum problema com isso, o fluxo das coisas segue uma certa naturalidade (diante do ambiente farsesco). Quem está acima disto é Carloto Cotta, que já tinha emprestado sua beleza e seu talento para a mímica em Tabu, de Miguel Gomes, e que agora assume o papel do bobo da corte sem pudores, sem medo de cair no ridículo e muitas vezers caindo. Seu sotaque é bizarro, assim como o tom que o filme adota, que nem sempre funciona, mas que coloca Diamantino num lugar muito particular.
Culpa ½
Den Skyldige, Gustav Möller, 2018
O longa de estreia de Gustav Möller se passa em cenário único e tem um protagonista que passa o filme todo ao telefone e se baseia praticamente numa história de reviravoltas, ramificações e repercussões. O jogo de Möller, coautor do roteiro, é lidar com a expectativa do espectador, buscando identificações e, sobretudo, surpresas. Se a estrutura é muito bem articulada e o diretor explora com bastante sucesso as possibilidades bastante limitadas de espaço, por outro lado, ao filme parece mais importar o efeito “oh” da revelação final do que a articulação até se chegar a essa conclusão.
Djon África ½
idem, João Miller Guerra, Filipa Reis, 2018
Conto de auto-descobrimento, jornada etnográfica pessoal, tentativa de registro de identidade, “Djon África” é um filme improvável que se apresenta de início como comédia de situações, bem humorada e com intenções políticas que ganham corpo da maneira menos provável seguindo um homem que decide buscar o pai em Cabo Verde e acaba revelando o país. O personagem central é o ótimo Miguel Moreira, o mesmo do documentário que os diretores rodaram antes, que interpreta a si mesmo e que agora parte para uma jornada ficcional, mas que ainda guarda muito casamento e reverência ao gênero predominante no cinema da dupla.
Em Chamas ½
Beoning, Lee Chang-dong, 2018
Jongsu toca sua vida, administrando suas tragédias e frustrações. Finge que não, mas guarda rancor pelo que não teve e pelo que lhe foi tirado. Cresceu autocentrado, um tanto egoísta, ainda que não fuja a suas responsabilidades, que aumentam a cada dia. Não é de pedir, mas às vezes ganha presentes que não esperava – e com os quais demora a se acostumar. O reencontro com a antiga vizinha, que ele conhece desde a infância, é, a princípio, blasé, mas logo se torna necessário. Jongsu rapidamente incorpora esses “novos elementos” a sua rotina de necessidades. É prático, como se o que e quem surge servisse para suprir o que e quem se foi. Então, como aceitar perder uma nova conquista? Lee Chang-dong adaptou um conto de Haruki Murakami para realizar em Em Chamas. Seu principal objetivo parece ser avaliar como um homem solitário lida com o que parece ser uma ameaça à ilha de tranquilidade que finalmente encontrou, mesmo que ele saiba que essa ilha nunca foi totalmente segura. O cineasta coreano parece encontrar o tom certo ao estabelecer um protagonista que acredita que não precisa mais pagar pelos pecados que não são seus, que já foi punido o bastante. Linda interpretação de Ah-In Yoo, que encontrou em Steven Yeun, o Glenn de “The Walking Dead”, um oponente à altura.
O Enterro de Kojo ½
The Burial of Kojo, Sam Blitz Bazawule, 2018
A sinopse que misturava vingança em família com misticismo e religião prometia muito, mas O Enterro de Kojo, meu primeiro contato com o cinema de Gana, é decepcionante. O diretor Sam Blitz Bazawule, que também é músico e mora em Nova York há muitos anos, já tinha feito alguns curtas, mas este primeiro longa parece estrategicamente feito para agradar festivais pelo exótico publicitário. Sua fotografia, cheia de filtros, busca um padrão de beleza Amèlie Poulain, com tudo ganhando tons envernizados e pretensamente oníricos. A vontade de fazer poesia é grande, mas o diretor não se concentra tanto nisso que o filme se atropela o tempo inteiro, inclusive no desfecho, apressado.
Eu Não Me Importo Se Entrarmos para a História como Bárbaros ½
Îmi Este Indiferent Daca În Istorie Vom Intra Ca Barbari, Radu Jude, 2018
O momento político no Brasil, com discursos de ódio surgindo como pop ups na tela no celular, parece tão ficcional que quis o destino que um cineasta romeno, repassando a história de seu próprio país, traduzisse sem intenção o que está acontecendo por estas bandas. Radu Jude se desvia da fórmula tradicional do cinema de seu país, que observa tão de perto o cotidiano para chegar às pequenas tragédias de seus personagens, para assumir a metalinguagem e assim poder falar mais claramente sobre a maldade nossa de cada dia. Na primeira cena do filme, a protagonista se apresenta e afirma que vai interpretar uma diretora que quer reencenar o massacre de judeus em seu país durante a Segunda Guerra Mundial com populares interpretando o povo da época. Em seu falso documentário, Jude discute o racismo enrustido e incrustrado na população, a hipocrisia, a negação do debate, a família tradicional, o militarismo, enfim, a Romênia da época, a Romênia de agora — e, por que não? – o Brasil de hoje também. O formato e o método encontrados pelo diretor são um pouco cansativos, com a personagem da diretora numa espécie de luta solitária para reverter o que se revela aos pouco o status quo, mas mesmo isto parece refletir de maneira torta o brasileiro que ignora dados, releva a raiva dos discursos e continua acreditando no que ouviu falar. Um filme longo, mas extremamente necessário.
Extinção
idem, Salomé Lamas, 2018
Uma investigação sensorial em forma de ensaio poético-cinematográfico sobre as fronteiras, políticas, físicas, emocionais. Sobre ficar e/ou partir. A portuguesa Salomé Lamas tem um estilo próprio de conduzir seus documentários, mesclando inúmeras opções de formato e linguagem. Em Extinção, ela parte de um fato real, a separação litigiosa da Transnístria das terras da Romênia, fazer uma reflexão bem maior, sobre nossos próprios limites, questionando inclusive o conceito de identidade.
Fabiana
idem, Brunna Laboissière, 2018
Fabiana, a caminhoneira transexual, é uma protagonista tão única que parece bastar por si só. Mas a personagem é maior do que o filme, que se acomoda num modelo de documentário cada vez mais gasto, observando a rotina tão detalhadamente que muitas vezes pode levar o espectador à dispersão. Sob um prisma político, é um registro fundamental. Sua maior função é marcar o espaço para o trans no cinema brasileiro.
A Favorita
The Favourite, Yorgos Lanthimos, 2018
O encontro de um cineasta polêmico e de marcas muito fortes como Yorgos Lanthimos com um gênero de cinema extremamente tradicional, o filme histórico, rendeu um efeito interessante: se de um lado, até por trabalhar com personagens reais e fatos que estão registrados, o diretor precisou se adaptar a um modelo de cinema que tem regras mais específicas; por outro, este gênero mais coxinha por causa de suas obrigações históricas ganhou um certo frescor com as escolhas insólitas do autor de Dente Canino. De fato, Lanthimos praticamente abandona o “cinema demência” que o consagrou e já vinha sendo diluído desde O Lagosta, mas, por sua vez, injeta o escárnio e o despudor na trama sobre o relacionamento da rainha inglesa com uma conselheira (e amante secreta) que tomava por elas todas as decisões. Relacionamento este que fica abalado pela chegada de uma jovem ambiciosa ao palácio real. As interpretações gélidas comuns aos filmes do diretor agora abusam do sarcasmo: o trio de protagonistas entendeu perfeitamente a proposta e entrega excelentes performances, com destaque para Olivia Colman, que vai do trágico ao ridículo, e vice-versa, muitas vezes na mesma cena. Mas Rachel Weisz e Emma Stone estão igualmente impecáveis. As atrizes ajudam a dar a Lanthimos o aval de “cinema sério” que ele precisava para poder abrir espaço para seus tiques, como o uso contínuo de planos de grande angular no meio das sequências, a iluminação à base de velas a la Barry Lyndon, os figurinos fora da casinha, e cenas nonsense como a da dança do salão. Embora o filme perca o ritmo em sua segunda metade, ainda é o trabalho mais bem resolvido de um cineasta muitas vezes sabotado por suas próprias intenções.
Grass ½
idem, Hong Sang-soo, 2018
Hong Sang-soo leva ao extremo seu projeto de cinema e assume a metalinguagem num nível quase metafísico, fazendo criador e criaturas coexistirem num mesmo plano, como se não enxergasse divisor entre o plano da realidade e o ficcional. O próprio diretor trabalha como ator no filme, mas cabe à musa Kim Min-hee o papel da autora que se divide entre os dois mundos. Os debates são os mesmos – o mundo, a vida, os relacionamentos, o amor – mas Sang-soo parece dar um passo além das interferências narrativas que aparecem em Montanha da Liberdade e Certo Agora, Errado Antes. Ambos são filmes melhores, mas menos ousados.
A História da Pedra ½
The Story of the Stone, Starr Wu, 2018
Sempre existem riscos na tentativa de se registrar, em filme, a “cena gay” de um determinado lugar: 1) a possibilidade de se criar uma visão superficial do movimento homossexual, como se tudo se resumisse à vida noturna; e 2) a chance de se acomodar a um mapa de tristezas persecutórias, como se ao indivíduo gay restasse apenas a punição do mundo ou a autopunição por sua condição. O longa de estreia de Starr Wu esbarra nas duas, mas surpreendentemente consegue um caminho do meio, sem ficar aprisionado às fórmulas da celebração ou da autopiedade. Existe uma alegria inerente aos personagens de A História da Pedra, uma espécie de versão moderna de um romance homossexual clássico, famoso em Taiwan. Mas esta alegria sempre surge com uma certa consciência da futilidade que cerca o universo e que Wu quer relativizar. Há um movimento do cineasta para que os personagens estejam um passo além do estereótipo, embora eles sejam o estereótipo. Nada acaba na primeira página, embora nem sempre o filme consiga ir além do óbvio. As imagens são bem bonitas. A câmera parece curiosa em relação a personagens e ambientes e procura ângulos e cores diferentes. O novelão, bem na tradição do drama popular oriental, ganha mais interesse.
Ilha
idem, Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2018
O primeiro longa da dupla, Café com Canela, ganha o espectador pela maneira carinhosa como cuida de seus personagens, quase como se conseguisse materializar os gestos afetuosos entre eles. E isso tomando uma série de decisões cinematográficas que poderiam (mas não acontece) se sobressair à espontaneidade que funciona tão perfeitamente ao filme. Ilha inverte bastante essa lógica. O filme é puro artifício desde a primeira cena. Assume seu jogo de metalinguagem e o defende até o final. Brinca com o cinema explícita e deliberadamente. Muitas vezes, o esquema não funciona tão bem e a espontaneidade que cativa tanto no longa anterior, se perde. Mas os diretores revelam muita ousadia em seu método e encontram um bom par de vezes momentos genuínos. A dúvida de se Ilha era realmente um bom filme me perseguiu até o final da sessão, quando a sequência que encerra o longa revela muito de onde o filme nasceu e os riscos fizeram bastante sentido.
Imagem e Palavra ½
Le Livre d’Image, Jean-Luc Godard, 2018
Já faz um tempo que Godard escolheu uma espécie de cinema-assinatura, o vídeo-ensaio em que o diretor reflete sobre a política, o comportamento, o mundo em si. Neste novo filme, a ideia ressurge com força, apoiada na reutilização de imagens que ajudam a definir os últimos 100 ou mais anos, de cenas de filmes a pinturas, passando por vídeos do YouTube, tanto registrando as transformações da sociedade como se desviando delas. Com ironia, Godard olha para a maneira como nossas representações do mundo são cúmplices de nossa desatenção para assuntos que realmente importam. As intervenções gráficas, como de praxe, ajudam a organizar a reflexão do diretor, que, em seu cinema-fragmento, estabelece uma narrativa muito próxima de outros de seus trabalhos mais recentes, mas que, desta vez, ganham uma força mais simbólica ao retrabalhar ícones de nossa cultura, pop ou não. Em sua meia hora final, essa reflexão migra para o que parece mais preocupar o cineasta nos dias de hoje, o mundo árabe. É quando o filme perde um pouco de sua particularidade e se concentra num material mais atual e um tanto requentado.
Infiltrado na Klan ½
BlacKkKlansman, Spike Lee, 2018
A comparação com Faça a Coisa Certa é incabível e pertinente ao mesmo tempo. Incabível porque não há como Spike Lee voltar no tempo até a época em que era quase um jovem desconhecido e provocar o mesmo impacto que o transformou no maior nome do cinema black americano. Pertinente porque, como na obra-prima de 1989, Lee estabelece um clima de comédia de costumes (que ri de si mesma, inclusive) e introduz seu grande tema, o debate étnico, em doses homeopáticas, mas num crescendo do registro de ódio até que o que resta é a violência. Infiltrado na Klan é o retorno do cineasta a sua melhor forma e ao seu principal assunto, diluído e fragmentado em muitos de seus últimos filmes. Se perdeu o frescor da juventude, Lee ganhou experiência. Está mais sóbrio do que nunca, procurando sempre que possível se colocar num estado acima do rancor que parecia embutido em muitos de seus melhores trabalhos. É como se o objetivo não fosse mais apenas lutar, mas lutar e viver. Com essa segurança, ele consegue, sem muito esforço, trazer à tona, mapear e denunciar um certo estado de espírito racista, xenófobo e segregacionista do americano médio que funciona como um rio subterrâneo, esperando a primeira oportunidade para chegar à superfície. Não por acaso, um estado de espírito cada vez mais lamentavelmente identificável também no brasileiro. O diretor se baseia no livro do próprio Ron Stallworth, um policial negro que consegue se infiltrar na Ku Klux Klan e que ganha um intérprete surpreedente nas mãos de John David Washington, filho de Denzel Washington, uma revelação ao lado de Adam Driver e Topher Grace.
José
idem, Li Cheng, 2018
O cineasta chinês Li Cheng foi até a Guatemala para registrar uma história comum em muitos países sulamericanos: a do jovem homossexual que, tolhido pela cultura da punição comportamental e religiosa, vive suas experiências sexuais às escondidas enquanto tenta manter uma vida “normal” para a sociedade. Nesse sentido, José, que ganhou o Leão queer no Festival de Veneza deste ano, é até bem básico (e bem intencionado), mas o filme ganha novos potenciais ao abordar contrapor a questão social – o protagonista é um assalariado que vive num bairro pobre, onde mora com a mãe, solitária, a quem ajuda com as despesas – e a possibilidade de viver uma história de amor real -, o que traz à tona um conflito interno bastante conhecido pelos jovens gays: fugir para “ser feliz” é uma opção? E o que fazemos com o que e quem fica para trás?
Limonada
Lemonade, Ioana Uricaru, 2018
Os clichês sobre a vida do imigrante num novo país ajudam ou atrapalham a contar uma história. Neste caso aqui, ajudam, mas também atrapalham. A romena Mara, que foi morar nos EUA, é uma personagem bem real, palmas para a direçao e para a atriz Mãlina Manovici. Mas à medida que o filme se desenvolve, fica clara que a ideia é punir a protagonista. Até chegar lá, am seu primeiro longa solo, a diretora Ioana Uricaru recicla tragédiasem cores bem reais, mas com um interesse mais do que estético, de criar atmosfera. E nisso o filme acerta em cheio. Apoiado no desenho da personagem central, o filme se coloca no mapa.
Malila: A Flor do Adeus
Malila: The Farewell Flower, Anucha Boonyawatana, 2017
Há vários “momentos” em Malila: A Flor do Adeus. Num primeiro, o filme parece não sair de uma grande discussão de relação entre os dois protagonistas, dois ex-amantes que se reencontram após um deles voltar de um casamento “normal”. Embora a diretora Anucha Boonyawatanam pareça reciclar certo um cinema LGBT inofensivo, que pede compaixão, esse capítulo inicial é importante para estabelecer os personagens, convidar o espectador a torcer por eles e preparar quem assiste para o segundo “momento”, em que uma cena de sexo é filmada de maneira delicadíssima e extremamente sensual. A Tailândia é um país dos mais complexos e a religião, o budismo, desempenha um papel importante na sociedade. É a religiosidade que abraça o terceiro “momento” do filme, em que ele flerta com o metafísico, o fantasmagórico e com a figura mais conhecida do cinema do país, Apichatpong Weerasethakul, de quem a diretora é fã declarada. Tantas transformações no tom e na forma parecem refletir a história da própria cineasta. Anucha é uma mulher trans e seu cinema, focado nas temáticas LGBT, tem trazido esses assuntos para a mesa da sociedade tailandesa.
O Mau Exemplo de Cameron Post
The Miseducation of Cameron Post, Desiree Akhavan, 2018
O ponto de partida parece contemporâneo e conectado com os debates atuais: a adolescente Cameron Post mora numa cidade pequena dos EUA e é flagrada pelo namorado quando faz sexo com outra garota. A solução para a família é enviá-la para uma espécie de internato que promete a cura gay. A partir daí, surgem várias possibilidades de dicustir a questão, mas o filme, baseado no livro de Emily M. Danforth, decide não desenvolver nenhuma delas. A impressão é de que a autora e a diretora já fecharam questão sobre o ridículo da situação e o filme, em vez de se aprofundar na construção dos personagens, fica tentando ser irônico e sarcástico em relação ao ambiente e aos personagens etereotipados dos administradores do internato. No fim das contas, não funciona nem como relato, nem como reflexão. Quando tenta ser melancólico, visando se filiar aos dramas indies de coming of age, termina igualmente raso por pura incompetência.
Mormaço ½
idem, Marina Meliande, 2018
A ocupação urbana, a grande cidade, o crescimento imobilário são temas muito caros ao cinema brasileiro recente. Mormaço, como O Som ao Redor, tenta unir homem e espaço adentrando no terreno da metafísica, ao mesmo tempo que, tal como Aquarius, especula a cerca da especulação imobiliária. Agora, são várias Claras oferecendo resistência ao massacre do sistema que marca a pele no melhor estilo de “A Salvo”, de Todd Haynes. A grande questão a cerca de Mormaço, direção correta, roteiro articulado, é: não parece demais? Não entra no assunto depois de todo mundo? Os elementos de terror demoram para entrar em cena e mesmo eles nos remetem aos filmes de Marco Dutra e Juliana Rojas. Mormaço tem uma espinha dorsal alinhada, mas não parece um filme muito original.
Uma Mulher em Guerra
Kona fer í stríð, Benedikt Erlingsson, 2018
Esse filme islandês foi uma das belas surpresas da Mostra de 2018. Destaque para a palavra “surpresa” porque ninguém imaginava que uma comédia popular pudesse ter tantas escolhas autorais e uma mensagem política tão forte. Segundo longa de Benedikt Erlingsson, o filme aposta no talento da excelente atriz Halldóra Geirharðsdóttir, que interpreta uma professora de canto que é “terrorista” ambiental. A direção de fotografia sempre encontra uma maneira de justificar ser tão calculada e a brincadeira com a música explora o nonsense com a espontaneidade que Roy Andersson gostaria de ter.
Muere, Monstruo, Muere!
¡Muere, Monstruo, Muere!, Alejandro Fadel, 2018
O filme de Alejandro Fadel não funciona tão plenamente como pretende o diretor. A ideia em si é mais sedutora do que quando o que é entregue, mas, mesmo assim, este é um dos longas de terror mais fascinantes dos últimos tempos, inclusive por causa de seus tropeços. É preciso ter muito colhão para contar uma história de monstro com forte tratamento realista e psicológico num momento em que existe tanto espaço para que a fantasia siga seu próprio caminho. Fadel, que já tinha demonstrado talento para capturar imagens em seu último filme, Os Selvagens, reprisa essa especialidade aqui, criando uma das atmosferas mais impressionantes entre todos os filmes desta edição da Mostra de Cinema de São Paulo, encontrando paisagens belíssimas na região dos Andes e transformando em habitat perfeito para que uma história de assassinatos em série ganhe contornos fantásticos. Se ele acerta na ambientação, na seleção dos atores e nas administração do clima, tropeça no desenvolvimento da trama, que nunca consegue dar conta de todas as camadas – psicológicas, principalmente – que Fadel tenta lançar sobre os personagens. Mas, mesmo que o resultado deixe a desejar, Muere, Monstruo, Muere é um dos filmes mais particulares deste ano.
Não Me Toque ½
Touch me Not, Adina Pintilie, 2018
Adina Pintille ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlim com sua estreia ousada em longa-metragem. Destaque para o “ousada” já que, sem dúvidas, a cineasta faz de tudo para que este seja o caminho para que se olhe seu filme, encarando todos os riscos neste processo. Não Me Toque é um longa interessado em chocar por meio de dois métodos: 1) tratando de temáticas que incomodam (como perversões sexuais e deficiências físicas); e 2) se assumindo/vendendo como um filme que tem coragem de mostrar – clichê, né? -, o que imediatamente provoca atração e repulsa, e, com elas, chama atenção para o trabalho. Ou seja, existe, sim, uma coragem formal, mas o exibicionismo é inegável e incômodo. O que diferencia o filme desta espécie de “exploitation de vanguarda” é que Adina parece realmente interessada em criar uma coisa nova. A maneira como ela se insere no filme, assumindo a metalinguagem, o mecanismo, é bem interessante, como se fizesse questão de deixar clara que existe uma performance, uma intervenção, que não deixa o filme ser classificado apenas como uma simples ficção, nem que assuma o conceito de documentário. O que não ajuda são as expressões forçadas de compaixão e consternação nas aparições da diretora.
A Névoa Verde ½
The Green Fog, Guy Maddin, Evan Johnson e Galen Johnson, 2017
Guy Maddin recriando Um Corpo que Cai? A ideia parece sedutora, mas o efeito desta colagem de pouco mais de uma hora de cenas de filmes e séries que se passam em San Francisco (junto com outras imagens da cidade) dura pouco e a brincadeira parece meramente estética e meramente brincadeira mesmo depois dos primeiros 20 minutos de filme. As coisas ficam mais claras quando se sabe que o filme foi concebido como uma homenagem à cidade, exibida no encerramento do festival de cinema de San Francisco e que Maddin nunca pensou em lançá-lo comercialmente. O cineasta se repetiu muitas vezes em suas experimentações, mas de vez em quando dá à luz a um filme bastante interessante, como o recente O Quarto Proibido. Entrar no seu jogo é pré-requisito para que seus filmes “funcionem”. Mas em A Névoa Verde é preciso estar um pouco mais disposto. Ao contrário de Los Angeles por Ela Mesma, de Thom Andersen, que parte da representação da cidade no cinema para chegar a uma construção da imagem de Los Angeles, o filme de Maddin se sustena pela paródia.
O Que Você Irá Fazer Quando o Mundo Estiver em Chamas?
What You Gonna Do When the World’s on Fire?, Roberto Minervini, 2018
O grande feito de Roberto Minervini não é acrescentar algo novo ao debate sobre preconceito nos Estados Unidos, mas ao observar o cotidiano de seus personagens de bem perto o documentarista praticamente realiza um estudo de caso que mergulha neste debate e mostra o racismo tanto como cenário quanto ameaça iminente. As discussões são literais, principalmente no discurso de Judy Hill, que desempenha um papel de líder natural da comunidade sulista que o filme retrata, mas ganham contornos mais complexos e menos óbvios nas cenas em que os garotos Ronaldo e Titus vagam pelas ruas da cidade ou ganham sermão da mãe, empenhada em que os destinos deles sejam diferentes dos de seus pais. Assim, Minervini estabelece a violência como o destino a qual a comunidade afro-americana foi condenada e da qual precisa dar um jeito de escapar.
La Quietud ½
La Quietud, Pablo Trapero, 2018
Começa realmente interessante, apesar de um certo excesso, desenhando uma relação pouco ortodoxa entre duas irmãs que não se viam havia muito tempo. Martina Gusmán e Berénice Bejo estão muito bem e em sintonia. Mas, de uma hora pra outra, o filme vira aquela pessoa que se acha sincerona e verdadeira “e fala na cara porque não tem medo de ninguém e os incomodados que se mudem”. Nesse caso, o incomodado se mudou para o lado dos que não gostam de um filme que se transforma numa espécie de tribunal dos pecados alheios – e todos os personagens têm pecados muito graves ou escandalosos – sempre sob o pretexto de ser um filme corajoso, que “não é para todos”. Num ano de belíssimos filmes humanistas e nem um pouco deslocados da realidade, como Amanda, Assunto de Família e A Nossa Espera, o novo longa de Pablo Trapero é uma vergonha. Só não é pior do que aquela emulação de Iñarritu chamada Abutres.
Roma
idem, Alfonso Cuarón, 2018
Imagino que Roma possa ser, para Alfonso Cuarón, um pedido de desculpas como Santiago foi para João Moreira Salles. Mas não podem haver filmes mais diferentes. Enquanto Salles resgata o mordomo de sua mansão do arquivo para expiar seus pecados (e eu gosto bastante do filme), Cuarón volta à infância para homenagear sua babá não apenas revisitanto sua biografia, mas a transformando num fio condutor para fazer uma radiografia de um país cheio de contradições a partir de um recorte. Ao mesmo tempo em que critica a hipocrisia (mexicana e tão brasileira também) no tratamento em relação às empregadas domésticas, “como se fossem da família”, sabe materializar em pequenos goles um afeto sincero. Cleo, a personagem principal, a jovem que saiu da periferia para anular sua vida cuidando das vidas de uma família de classe média alta, nos leva por uma jornada solitária que não apenas mapeia suas tragédias pessoais, mas desvenda um México em ebolição, em que os jogos de poder independem das classes, mas se materializam principalmente no abismo entre elas. Cuarón tenta não ser maniqueísta em suas escolhas e acerta em boa parte delas. Estetiza, como de praxe, o olhar de sua câmera, mas não para entregar um filme limpinho. Seu preto-e-branco, seus travellings, procuram dar conta de sua intenção de registrar, de documentar, ao mesmo tempo em que acolhem seus personagens. Roma não foge à regra de seus projetos: é imenso sendo pequeno, é para o mundo sendo também pessoal.
Ray & Liz ½
idem, Richard Billingham, 2018
O mundo todo tenta, mas nenhuma cinematografia explorou de maneira mais profunda e incisiva a falência do ambiente familiar do que o cinema inglês. De Ken Loach a Mike Leigh, do único filme dirigido por Gary Oldman a esse Ray & Liz. Longa de estreia do fotógrafo Richard Billingham, a história do filme é a mais do que uma velha conhecida, é a história do próprio do autor. Aliás, de seus pais. Nos anos 90, Billingham já tinha registrado num álbum de fotografias, imagens de seus pais, Ray e Liz, retratando a decadência de sua família ao longo dos anos. A conversão para o cinema amplia o escopo narrativo, colocando em paralelo três épocas temporais em que essa degradação ganha perspectiva histórica. Tudo é fotografado com de maneira triste e dolorida em cores fortes que denunciam ainda mais aquele ambiente disfuncional. Nessa missão, as duas duplas de atores que interpretam os papéis-título são fundamentais para pintar o quadro final de tanto sofrimento.
A Rota Selvagem
Lean on Pete, Andrew Haigh, 2017
A necessidade do expurgo parece ser uma das características fundamentais do cinema de Andrew Haigh, mas, se em Weekend e 45 Anos, esse expurgo era associado a uma condição massacrante – o “submundo” gay, um casamento morto pela rotina -, em A Rota Selvagem ele parece uma consequência mais espontânea da solidão, sem que haja culpados ou maldições. Este novo filme parece se filiar a uma releitura do western, ou do Oeste americano, que reinventa os signos do gênero mais puramente americano, explorando seu cenário com desilusão e sem pompa. O jovem treinador de cavalos interpretado pelo ótimo Charlie Plummer cai na estrada em busca do que mesmo? De uma tia desparecida ou de si próprio? Num belo dia, as coisas param, de fazer sentido, de se bastarem. Charley procura direção, significado e sua jornada é cheia de momentos dolorosos como todo e qualquer coming of age que se preze.
Sal
Sal, William Vega, 2018
O segundo longa do colombiano William Vega promete mais do que cumpre com a história de um homem que parte – pelo meio do deserto de sal – em busca do pai de que não tem notícias há muito tempo. O cenário árido combinado a uma espécie de busca existencialista parecia ser um terreno fértil para discutir temas importantes, como paternidade, solidão, lugar no mundo, mas Vega perde o foco e a essas discussões adiciona um certo exotismo no modo de vida dos personagens que cruzam o caminho do protagonista ao mesmo tempo em que insinua uma observação política sobre os grupos paramilitares que dominam a área. O resultado é que nenhum aspecto ganha um olhar mais analítico ou aprofundado e a sensação é de que a excentricidade da história pesa mais do que qualquer debate.
Sofia ½
idem, Meryem Benm’Barek-Aloïsi, 2018
O fato de ser dirigido por uma mulher, a estreante Meryem Benm’Barek-Aloïsi, traz luzes para Sofia, que reprisa a trama de casamentos arranjados, mas por um ponto de vista um pouco mais inusitado, uma maneira mais incisiva e cínica de olhar pro jogo de aparências e para as tradições dos países árabes. O problema é que o desenrolar não fuja do tom novereiro. Maha Alemi é a Kristen Stewart árabe (antes da gente gostar da Kristen Stewart) sempre com aquela cara de quem está se danando pra você.
Sol Alegria
idem, Tavinho Teixeira, 2018
Libertário e libertino, anarquista e familiar, possivelmente nostálgico em relação a um certo cinema nacional cujas vozes pararam de se renovar há algum tempo, mas que parecem fazer isso orgulhosamente agora. Tavinho Teixeira fez um road movie bressanista/sganzerlista pouco interessado em verossimilhança, mas que, vejam só, traduz muito dos últimos anos da história brasileira. Com sua família “moderna” e seu convento pouco tradicional, assalta a moral, desafia o convencional e nos permite a utopia absoluta, o fluxo da vida, a liberdade em si.
Tarde para Morrer Jovem ½
Tarde Para Morir Joven, Dominga Sotomayor Castillo, 2018
Prêmio de melhor direção em Locarno, o terceiro longa da chilena Dominga Sotomayor Castillo faz um retrato de uma comunidade isolada nas montanhas chilenas. Acompanha uma dúzia de personagens, reproduzindo seu cotidiano libertário, longe do convívio com a sociedade organizada propriamente dita, vivendo suas regras. Seu olhar privilegia três jovens adolescentes (ou pré-adolescentes) em seu coming of age pouco usual, em que a espontaneidade e naturalidade nem sempre conseguem abraçar todas as questões. O registro escolhido pela cineasta – a observação do dia-a-dia e a liberação em pílulas dos códigos daquela comunidade – funciona muito bem para apresentar os personagens, ambientar o espectador e traçar um raio-x daquele lugar, mas não resiste à frágil tentativa de conceber um evento final que mobilizasse o corpo de moradores e supostamente oferecesse caminhos de como trabalhá-los.
Temporada ½
idem, André Novais Oliveira, 2018
Desde seus curtas e seu primeiro longa, o cinema de André Novais Oliveira já chamava atenção pela maneira como o diretor conseguia trazer um espectro, uma representação da vida real para a tela, sem querer reproduzi-la em sua complexidade, mas como se mirasse em sua mecânica. Tanto que fazia isso mesmo incluindo elementos de fantasia nos filmes e utilizava seus próprios pais, atores amadores e por isso pouco espontâneos, nos elencos destes filmes. O naturalismo nunca foi sua ambição, mas trazer uma atriz profissional para seu novo projeto modificou completamente – e para melhor – seu cinema. Grace Passô, com todo seu talento e, olha só, naturalidade, protagoniza Temporada e inclui novas camadas para esse olhar clínico do diretor para a vida comum. Há um ganho emocional inegável no novo longa, sobre uma mulher que troca de cidade para assumir um emprego público e precisa adaptar a tudo o que ganhou e tudo o que perdeu com essa mudança. Grace é uma atriz maravilhosa, intensa, cheia de inteligência gestual, que consegue se camuflar na pele de uma pessoa “do povo” com imensa facilidade. Essa transformação permite que o diretor exponha o humano entre os detalhes da vida comum, de uma história quase não-história, da simplicidade.
A Terra Imaginada
Huan Tu, Yeo Siew Hua, 2018
A degradação da condição humana é contínua, infinita e alucinógena no primeiro motor da sociedade industrial — o uso maciço e ilegal do imigrante como força elementar de trabalho — segundo o cineasta cingapuriano Yeo Siew Hua. E sua consequência mais imediata — ou a saída mais viável para o indivíduo, numa outra interpretação — é ser literalmente engolido pelo processo ou se alienar no próprio mecanismo, atravessando algumas vezes os limites da mente e da metafísica. O cenário principal de Uma Terra Imaginada, seu terceiro longa, Leopardo de Ouro no Festival de Locarno, é o de uma entre muitas empresas que, num país que é uma cidade e uma ilha, se dedicam a criar várias outras pequenas ilhas menores, aterrando áreas de alagadas, para construir campos de trabalho. Mais do que a expansão imobiliária e urbana, muito explorada no recente cinema brasileiro, há uma expansão específica em progresso aqui, o crescimento do espaço de produção, que o diretor acredita estar diretamente associado à expansão do campo onírico, inclusive como refúgio possível para o trabalhador que se permite a consciência do processo.
Diferentemente de tantas outras denúncias de condições de trabalho e muito mais ampla do que uma discussão sobre direitos humanos, Yeo Siew Hua se lança numa ambiciosa empreitada que discute a própria noção de realidade, tanto na vida e na rotina de trabalho como em seu próprio cinema, que absorve esse debate, abraçando a mudança de aspecto, recorte e narrativa sem aviso prévio, mas de uma maneira supreendentemente orgânica. Da investigação policial sobre o desaparecimento de um personagem, o cineasta nos permite acompanhar a história de um homem que foi absorvido pelo próprio processo a que está submetido. Das mais variadas formas e interpretações, como se “a evaporação de um homem” analisada meticulosamente, mas pelas bordas por Shohei Imamura, fosse vista de dentro, num mecanismo gradativo de abstração da condição humana e da própria condição existencial, com aspectos psicológicos e até de certa forma religiosos ou espirituais sendo levados em conta nesta espécie de ficção-científica ritualística e de atmosfera transitória. O diretor elege etapas às quais ele sempre se alterna: o isolamento, o reconhecimento no outro, a conscientização do processo, a negação e a vitória do fluxo.
Yeo Siew Hua é de uma delicadeza ímpar na condução de um projeto tão intenso, embora haja momentos menos sutis em que as metáforas e didatismos podem parecer iscas para fetichistas do significados camuflados. Mas, na maior parte do tempo, seu filme, complexo, com mais camadas do que nosso olhos mortais possam identificar, faz com que essa variação de temas e tons flua de maneira tão suave, natural e concatenada que é como se assumissem a forma de um pequeno estudo sobre o conceito filosófico de “destino” aplicado ao mundo visível. Um grande filme, mas, se perguntar, ele nega.
A Valsa de Waldheim ½
Waldheims Walzer, Ruth Beckermann, 2018
Há um momento em A Valsa de Waldheim, esse monumental documentário de Ruth Beckermann, que o jornalista que primeiro publicou as denúncias contra o então candidato à presidência fala em entrevista: “ele é o candidato perfeito para presidir a Áustria. Ele é o típico austríaco”. Ele se referia a Kurt Waldheim, ex-secretário geral da ONU, então futuro presidente da Áustria e oficial do exército nazista alocado numa seção que mandou centenas de judeus gregos para os campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Durante anos, a diretora recolheu material (muito gravado à época por ela mesma) sobre como as denúncias sobre o passado de Waldheim, reveladas apenas durante a campanha foram recebidas no país naquele momento, segunda metade dos anos 1980. Beckermann retrata um país dividido entre a indignação diante da possibilidade de um militar nazista assumir o poder e o franco desinteresse em acreditar em documentos, registros e declarações, passando ao largo desta ideia, como se ela fosse secundária ou desimportante. Novamente, a semelhança com o Brasil atual é impressionante e o efeito de cada fala, de cada associação a um discurso supostamente religioso e tradicionalista, é devastador.
Verão ½
Leto, Kirill Serebrennikov, 2018
O clima de melancolia adolescente já estava instalado pela fotografia em preto-e-branco, as cenas de luau na praia e o folk rock das composições dos personagens quando, numa cena dentro de um trem, alguém fala com a câmera e o filme para para apresentar um “clipe” de uma versão de “Psycho Killer”, dos Talking Heads, cheio de interferências visuais pop no estilo de Scott Pilgrim e uma certa despreocupação com verossimilhança a la Trainspotting. As referências talvez não agradem a todos, mas o filme flui com tanta esponteidade a partir e com elas que é muito fácil embarcar no jogo de Verão, esse retrato leve, mas que não abre mão de uma consciência política e libertária da cena rock de Leningrado no início da década de 80. O filme apresenta personagens reais, envolvidos numa disputa pessoal silenciosa em vários níveis e, seu maior mérito, retrata o processo de criação das músicas, com a interferência do roqueiro veterano na obra do novato e, parando, sempre que possível para celebrar Lou Reed, David Bowie, Iggy Pop e todos esses nomes básicos – óbvios, mas e daí? – que construíram a música pop da segunda metade do século passado.
Vida Selvagem ½
Wildlife, Paul Dano, 2018
Paul Dano parecia bem mais interessado em fazer um filme bonito do que em fazer um filme bom. Dá pra imaginar ele passando as orientações para os atores dentro de um museu, perto dos quadros de Hopper, mas Dano tem que comer muito frango KFC para se tornar um Haynes. Vida Selvagem já nasce fora de moda e o diretor se dedica tanto a buscar os enquadramentos perfeitos (como na cena da corrida do menino pelas ruas da cidade) como se a estética estivesse em primeiro plano. Essa obsessão engole os protagonistas, sobretudo Mulligan, que parece nunca saber muito bem o que fazer para dar corpo a sua personagem. Seu primeiro longa como diretor utiliza as caras conhecidas de Mulligan e Gyllenhaal, mas quem se destaca aqui é Ed Oxenbould, um dos grandes atores do ano. Famílias desintegradas já foram mais sedutoras.
Vidas Duplas
Doubles Vies, Olivier Assayas, 2018
Olivier Assayaas já fez filmes muito mais complexos e profundos e a impressão inicial nas primeiras cenas sobre “Vidas Duplas” é de que ele tentava falar de um assunto que não dominava, desconhecia ou até mesmo rechaçava porque se sentia ameaçado por ele (a transformação da maneira de se consumir cultura por causa da internet). Mas depois que o filme se estabelece e se revela muito mais sobre seus personagens e como eles se adaptam aos novos tempos, como encaram o envelhecer, os diálogos começaram a ficar mais sóbrios e fazer mais sentido. Assayas parece querer entender o próximo passo e faz isso numa comédia até razoavelmente leve para seus padrões. O elenco é ótimo, com destaque para Vincent Macaigne, como o autor em crise, e sua mulher, interpretada por Christa Théret (Canet e Binoche estão inspirados também).
“Roma não foge à regra de seus projetos: é imenso sendo pequeno, é para o mundo sendo também pessoal.” – Com essas palavras posso ficar em paz este ano. Assino em baixo. Quero ouvir esse mesmo discurso no podcast. Pra mim já é o meu favorito do ano, e quem dera se eu pudesse assistir tantos como você. Mas acho sensível a forma como você fala dos filmes no geral, como tem uma visão ao mesmo tempo macro sem soar clichê. Há alguns anos atrás, eu costumava frequentar seu blog e passeava meus olhos nas suas críticas sempre tentando buscar algo inspirador, por algum motivo deixei de frequentar seu espaço sagrado, mas agora voltarei com frequência.
Abraços,
Ricardo Rocha
Ô Ricardo, fico muito feliz com seu comentário.