A Terra e a Sombra
[La Tierra y la Sombra, César Augusto Acevedo, 2015]
Existem pelo menos dois cinemas muito tentadores na América Latina: o cinema do exotismo, que explora a curiosidade do cotidiano de comunidades específicas, ainda isoladas ou simplesmente desconhecidas de boa parte do mundo, e o cinema social, que denuncia situações de exploração, subememprego e miséria. Esses subgêneros são tão atraentes que muitos cineastas desenham seus filmes unicamente de acordo com as regras e os padrões de um desses tipos de cinema, condenando-os a um lugar comum e confortável, sem se preocupar muito em desenvolver as personagens. Em A Terra e a Sombra, o colmbiano César Augusto Acevedo faz exatamente o contrário. A situação de exploração dos trabalhores nas plantações de cana de açúcar oferecem a base e o entorno para que um pequeno melodrama familiar se desenvolva. O filme começa com a volta de Alfonso para a casa que deixou há muitos anos, onde ficaram a mulher e o filho dele, que hoje é casado e pai de de um menino. A distância entre os integrantes daquela família vai diminuindo à medida que suas histórias vão se explicando. O roteiro sempre traz o aspecto social amarrado aos movimentos das personagens, mas nunca como protagonista da história. O humano interessa muito mais à câmera de Acevedo, um diretor estreante, do que as implicações políticas daquela situação e essa opção é mais política do que qualquer outra. A composição visual do filme é belíssima. Cada plano tem um sentido e um significado, cada movimento tem um propósito. Tudo parece estar examinar as relações entre homem e terra e entre pai e filho. O tom é solene em alguns momentos, como na queima do canavial ou na despedida do menino, o que tira um pouco do realismo duro do projeto, mas não compromete o conjunto. Os atores, treinados pela brasileira Fátima Toledo, entregam performances bem vivas, sobretudo as mulheres do elenco. Apostar nas personagens em detrimento à denúncia social foi o caminho mais digno para encontrar a humanidade naquele canavial colombiano.
Sindicato de Ladrões
[On the Waterfront, Elia Kazan, 1954]
Sindicato de Ladrões é uma experiência completamente diferente do que se fazia no cinema até então. O filme é a primeira grande celebração do naturalismo no cinemão norte-americano, com todos os atores interpretando “gente do povo” como “gente do povo”. Marlon Brando comete uma das maiores interpretações da História, a maior de sua carreira. Karl Malden, Lee J. Cobb, Rod Steiger e Eva Marie Saint seguem de perto. Mas o filme que vira uma denúncia sobre a ação criminosos dos sindicatos nos portos da América vai muito além do papel social. Kazan usa o filme como maneira de dar sua palavra sobre a delação, que move a trama central e pela qual ele foi crucificado por dedurar companheiros comunistas durante o macarthismo. O poder simbólico da sequência que encerra o filme é brutal. Pode conquistar ou repelir o espectador. Mas até ela chegar, Kazan filma com tanta maestria, cria cenas tão imponentes, como o discurso do padre no cais, ou tão simples como o beijo que leva o casal ao chão, com tanta delicadeza que transforma este filme num dos maiores já feitos pelo cinema norte-americano.
É o Amor ½
[C’est L’amour, Paul Vecchiali, 2015]
Os protagonistas de É o Amor parecem embriagados. Encharcados de sentimentos tortos e conflituosos, nunca completamente explicados porque não existe muita regra para sentimentos. O contador, sua mulher, seu amante, o amante deste seu amante, todas as personagens do filme parecem completamente apaixonados, mas sem saber exatamente o que fazer com isto. Paul Vecchiali comanda o longa como maestro de uma melodia curta, encantadora e meio maluca, que brinca com a métrica e com a perspectivas das cenas. O diretor, um provocador por natureza, escolhe como uma das personagens principais um ator que teria ganho o César depois de fazer um filme sobre pegação gay, numa claríssima alfinetada ao recente Um Estranho no Lago. Talvez o cineasta não enxergue afeto no drama árido de Alain Guiraudie, talvez prefira encher seus protagonistas de sentimentos conflituosos que deixam seus passos menos prováveis, mais interessantes. Duas atrizes coadjuvantes roubam as únicas cenas em que aparecem: a mãe de Odile, cuja participação musical é encantadora, e a agente de Jean, num momento de comédia que enche o filme de esperança.
O Quarto Proibido ½
[The Forbidden Room, Guy Maddin, 2015]
Guy Maddin nunca foi um cineasta despretensioso, mas este O Quarto Proibido é seu projeto mais ousado. Aliás, ousado é um adjetivo inadequado para uma experiência visual e sonora tão espetacular como esta. Maddin parece se estruturar em cima do conceito de pastiche: nada está ou aparece sozinho no filme. Para cada história que se sobrepõe a outra, existe muitos experimentos sensoriais. Cada cena é uma obra de arte isoladamente, onde o diretor muda a iluminação, usa filtros, sobreposições, modifica texturas, além da direção de arte, que já é impressionante e de tudo isso vir acompanhado por um trabalho estudadíssimo de som, trilha e efeitos visuais elaborados. O senão para o projeto é que, na tentativa de, talvez, deixar sua experiência mais palatável, Maddin adota um tom burlesco para a história e as interpretações (perdidos no elenco enorme estão Mathieu Amalric, Geraldine Chaplin), o que adiciona informações demais para o filme e deixa a sessão bem exaustiva.
Coração de Cachorro
[Heart of a Dog, Laurie Anderson, 2015]
Laurie Anderson surpreende com um documentário-soneto sobre o mundo, a vida, a morte e uma cadelinha chamada Lollabelle. Uma costura difícil, mas que a compositora de O Superman, conduz com bastante graça, anotando observações sobre tudo o que está a sua volta. O documentário em primeira pessoa tem ecos do trabalho de Jonas Mekas, talvez sem o mesmo tom pitoresco, mas divaga igualmente para os assuntos mais abstratos e mais distantes do que vinha imediatamente antes. Animações, colagens, texturas mostram uma preocupação em fazer um trabalho sofisticado que poderia fazer sentido apenas para Laurie, mas que terminam criando uma fartura de pontos de identificação com o espectador. Embora abra o coração para falar de sua intimidade muitas vezes, incluindo sua relação distante com a mãe, a diretora nunca macula a imagem de seu companheiro, Lou Reed, que morreu há dois anos e que dividiu a vida com Laurie até os últimos dias.