Na noite mais triste, eu tive a oportunidade de voltar a ser repórter.

Na noite mais triste, eu tive a chance de voltar a estar no local de um fato, de voltar a acompanhar uma cobertura.

Na noite mais triste, eu voltei a estar mais perto de uma notícia, a ser o primeiro interlocutor entre ela e quem a recebe.

Na noite mais triste, eu conheci e interagi com colegas que estavam na mesma situação que eu, enfrentando o improviso para informar.

Na noite mais triste, eu fiquei um pouco feliz por ter tido essa nostalgia, me senti fazendo um trabalho importante.

Nesta noite mais triste, eu lembrei de que eu era jornalista. Não que eu deixasse de ter sido, mas eu tinha lembrado disso.

Mas, na noite mais triste, eu também fiquei triste. E não foi por causa do frio, da chuva e do vento. Foi porque, às vezes, eu me questionava sobre a natureza da minha função.

Na noite mais triste, na porta do IML, minha notícia eram números. Minha função era atualizar a chegada de corpos. Não que eu gostasse ou sentisse algum prazer mórbido com a chegada de cada rabecão. Mas havia, a cada telefonema com uma nova informação para a redação – e quando se trabalha para um portal os telefonemas são vários -, uma sensação de dever cumprido.

O momento mais triste da noite mais triste foi quando chegaram os primeiros parentes. Foi quando um irmão disse que soube que seu irmão mais velho era um dos passageiros de um vôo que virou chamas pela televisão. E quando o pai dos dois disse que a última vez que viu o filho foi há pouco mais de um mês, quando foi ao Rio Grande do Sul para o batizado do netinho, um bebê que hoje tem três meses.

Na noite mais triste, eu, por quase um segundo, pensei: – eu tenho uma história boa nas mãos. Mas aí lembrei que, de boa, aquela notícia não tinha nada. E entendi porque o jornalista tem aquela fama de urubu. E, olha, que ninguém que estava ali, pelo menos que eu saiba, ultrapassou o limite incerto entre ser ético e ser desrespeitoso.

Na noite mais triste dos últimos tempos, eu fiquei pensando na natureza do que eu faço e gosto de fazer. E cheguei à conclusão de que, mais cruel do que parece ser minha profissão aos olhos de quem vê de fora, é saber que, na maioria das vezes, me vêem completamente diferente do que eu realmente sou por causa do que eu faço.

E isso era bem pequeno, quase um segredo, numa noite tão triste.

Comentários

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18 comentários sobre “Na noite mais triste”

  1. Chico, que relato mais lindo. Triste, posto que real. Mas lindo e poético.
    Li isso no dia e não comentei (sou uma procrastinadora em altíssimo grau, isso me envergonha), mas queria deixar registrado que me emocionou.

  2. Chico,

    Há maus profissionais em qualquer profissão. Você não é um deles justo por que consegue ponderar e se ater aos seus valores diante da tentação. Pensar todos pensamos; agir, só alguns…

    Beijo

  3. Chico, você consegue escrever bonito até quando a coisa é feia.
    E o seu profissionalismo é admirável e em qualquer espaço que você esteja ocupando (trabalhando) será sempre bem completado, pela sua grande capacidade e garra.
    Bjs

  4. Ana, esse blogue é, muitas vezes, meu refúgio do factual. Às vezes, acho que é aqui que eu queria morar. Mas a realidade sempre fica nos chamndo, né?

    Maitê, obrigado, mas acho que jornalista é jornalista e que vc não agiria diferente.

    Hermes, valeu! Irmã, pode parecer clichê, mas a verdade é que, a toda hora, eu ficava imaginando se eu tivesse alguém próximo ali.

    Rê, eu fico feliz de que algumas pessoas ainda consigam ver a pessoa que está por trás de um texto.

  5. É a primeira vez que visito seu blog e já me sinto na obrigação de comentar.
    Sim, porque, como colegas de profissão, mesmo sem nos conhecermos, entendi cada linha do que você disse. Ou melhor. Cada entrelinha.
    E embora não trabalhe com mídia diária e imediata, como você, também sofro da má fama que os jornalistas levam em momentos como esse.
    Resta que saibamos reverter esta fama de abutres para a de conclamadores da tal “ordem e progresso” que ultimamente tem passado bem longe do nosso país…

  6. Esse texto acho que demonstra o sentimento de todos nós ( independente de sermos jornalistas ou não; concordo a sociedade tem que cobrar mudanças urgentes. Irmão bjocas!!!!!!!!!!!

  7. :’o(
    Com fama de urubu ou não, parece que apenas a imprensa fez o papel de trazer informações aos parentes das vítimas, cobrar das autoridades, mostrar o que precisava ser mostrado. O que nos fez pensar que “ainda bem, além dos bombeiros alguém mais estava trabalhando naquela noite”. Acompanhei muitas reportagens, dava pra ver o sofrimento refletido nos olhos de cara jornalista lá. Foi barra.

    =*

  8. Aconteceu. Já era esperado. E outras noites mais e mais tristes acontecerão.
    Qdo a ética vai pro ralo… Não há mesmo muito o que fazer a não ser lamentar.
    De a vera temos um único poder atualmente: o de dizer não.
    Um não consciente: não viajarei de avião e se o fizer, faço seguro antes.
    Não comprarei um montes de coisas inúteis.
    Não pedirei empréstimos.
    Não acordarei cedo, nem serei workaholic.
    Não vou acreditar em ter mais e mais.
    Não entrarei mais no joguinho de mesquinharia e arrogância da dita civilização.
    Não, não e não.
    Marx pensava que o trabalho tinha o poder. Ledo engano. Mas o consumo tem o poder. É um poder estóico. Frugal. E exige firmeza e constância. Se não fizermos uso desse último poder, dessa última força que temos então só aguardar e se encher de bom humor para rir disso tudo. O deboche e o cinismo também são forças só que negativas d+.
    Melhor a conciência.

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