Eu me sinto meio inocente escrevendo este texto, mas O Diabo Veste Prada teve um efeito estranho sobre mim. Não porque seja um grande filme – um bom filme, ele evidentemente o é – nem por ser exatamente original na sua temática – há dezenas, ou mais, de filmes que abordam os mesmos assuntos – e nem mesmo adianta eu tentar descobrir uma razão para explicar minha comoção porque esta ainda é obscura para mim. Porque, bem… porque muitos filmes que eu vi antes dele poderiam ter me despertado tal reação. Inclusive é bom parar por aqui porque, a cada frase que eu digito no meu PC prestes a travar mais uma vez, parece que a tal reação ao assistir ao filme foi especialmente devastadora para mim. Não foi. Ela só me deixou um pouco reflexivo.
Tentando organizar as idéias, é o seguinte: O Diabo Veste Prada é mais um filme que lida com o clássico plot do confronto do homem com a máquina. Entenda-se por máquina tudo aquilo que foi criado pelo homem: desde as engrenagens de Tempos Modernos à corporação de Em Boa Companhia. Máquina que assume formas variadas e que, não raramente, coopta algo inerente à natureza competitiva do próprio homem. Neste filme, esse embate é com a indústria das revistas de moda, um ambiente hostil como talvez também possamos classificar a indústria do cinema, a bolsa de valores ou a imprensa.
Como em quase todas as obras que tratam do assunto, o ambiente é personificado. Cabe a Meryl Streep encarnar a perversidade daquele universo. E o James Stewart da vez se chama Anne Hathaway, que assume o papel de uma mulher simples que se contamina pouco a pouco pelo que está em volta. Até aí, nada de novo, mas o filme reserva um pouco mais. Entre dezenas de situações-clichê, algumas excessivas, Meryl Streep, uma atriz admirável a quem o elogio virou sinônimo de obviedade, está sempre muito bem em cena, mínima, detalhista, sempre que pode humanizando e tornando as ações de sua personagem mais palpáveis. Do outro lado, Anne está delicadíssima no papel. Acredito que foi justamente a ingenuidade que ela deixa impregnada em sua personagem que tenha me fascinado tanto.
Ao contrário de Topher Grace no bom Em Boa Companhia, a mocinha de Anne não percebe que aos poucos começa a se macular com a natureza de seu trabalho. Sua Andy realmente acredita que está mantendo sua essência mesmo num ambiente daqueles. E o que é mais tocante é que a personagem não é exatamente uma idealista, com grandes conceitos morais ou éticos. Sua essência é meio pueril. É inocente. Ela é apenas uma pessoa boa, sem ser uma pessoa muito boa, exemplarmente boa. E aquilo ali começa a não parecer tão mau para ela. À medida que Andy se envolve com seu emprego – e o pior – à medida em que tenta ser uma funcionária eficiente, sua essência vai se maculando de forma que algumas das coisas que ela faz se tornam, não necessariamente naturais, mas parte do jogo.
Não é que ela tenha sido seduzida pela fama ou pelo status porque, sim, sua essência não saiu do lugar. Seus limites, os limites dessa essência, são o que mudou. Então foi aí que – e essa parte vai parecer meio brega – aconteceu uma coisa que eu nunca poderia imaginar: identificação. Comecei a lembrar de todos os empregos que eu tive, dos patrões políticos, dos chefes completamente envolvidos com aqueles interesses. E de quanto eu realmente, sinceramente, acreditava que estava minimamente maculando a minha essência. O quão disfarçadamente flexíveis se tornaram minhas crenças quando eu fiz isto ou fiz aquilo porque a natureza do meu trabalho me exigiu. Ou me pediu.
Então eu fui além – quando me disponho a refletir sobre o mundo, a vida, isso atinge proporções interestelares – eu comecei a imaginar que esse tipo de enquadramento não é apenas normal, mas é necessário independentemente de que seus patrões sejam políticos. Basta estar jogado num universo ampliado, que envolva muitas pessoas, um certo poder, muitos conceitos, influência. A organização, que é uma extensão da vida em grupo, faz as pessoas agirem assim. Veja o que aconteceu com o PT. Bastou ele crescer.
Um dia desses, pelo MSN, um amigo que integra a Liga dos Blogues Cinematográficos, que eu coordeno e que, em três anos, viu dobrar o número de membros, afirmou que o grupo estava sério demais, que tinha regras demais, que eu estava diferente, com exigências diferentes, posturas diferentes. Eu havia mudado. E sabe qual foi minha argumentação de jornalista que defende melhor suas idéias quando escreve do que quando está na frente da pessoa? (E isso talvez porque quando se escreve, à distância, fica mais fácil você formatar uma idéia, elaborar um conceito). ?A liga cresceu muito. Esse tipo de organização é necessária?.
Então foi isso? Eu sucumbi? Mas eu, que me acho tão francamente criança, tão sinceramente romântico, creio tão profundamente que o bem vence o mal, eu que sou muito mais o Super-Homem do que o Batman ou o Wolverine? Logo eu? Eu falhei em manter a minha essência e isso foi não apenas no trabalho, mas também no que começou apenas como diversão? Isso me deixou um pouco deprimido. Fiquei defendendo para mim mesmo que a adequação é inevitável, que os rebeldes se tornam primitivos, ridicularizados pelos es-cla-re-ci-dos ci-vi-li-za-dos. Fiquei repetindo para acreditar. Fiquei repetindo para acreditar. E eu não fiz nada parecido com a edição do debate Lula x Collor no Jornal Nacional. Eu fiz pequenas coisas, coisas inerentes. Fui mais omisso do que fiz alguma coisa.
E eu nem sei cozinhar para montar um restaurante e virar meu próprio patrão. Nem sei dirigir para virar motorista de táxi. E nem dinheiro para comprar um táxi eu tenho. E provavelmente daqui a alguns dias eu vou ter esquecido que escrevi este texto, que Diabo Veste Prada me deixou um pouco reflexivo, porque esses finais bonitos onde o mocinho larga tudo e se propõe a recomeçar são mais fáceis no cinema. Me perdoem se este texto ficou exageradamente pessoal, mas eu precisava ver se a minha essência ou pelo menos uma parte dela ainda estava no lugar.
[o diabo veste prada ]
direção: David Frankel.
roteiro: Aline Brosh McKenna, baseado em livro de Lauren Weisberger.
elenco: Anne Hathaway, Meryl Streep, Emily Blunt, Stanley Tucci, Adrian Grenier, Tracie Thoms, Rich Sommer, Simon Baker, Daniel Sunjata, Jimena Hoyos, Rebecca Mader, Tibor Feldman, Stephanie Szostak, David Marshall Grant, James Naughton, Gisele Bundchen, Heidi Klum, Valentino.
fotografia: Florian Balhaus. montagem: Mark Livolsi. música: Theodore Shapiro. desenho de produção: Jess Gonchor. figurinos: Patricia Field. produção: Wendy Finerman. site oficial: O Diabo Veste Prada. duração: 109 min. The Devil Wears Prada, Estados Unidos, 2006.
nas picapes: [the line is fine, travis]
Chicória
AMEI !!!!!!!!
O diabo pode até vestir Prada…
O diabo pode até vestir Chanel…
O diabo pode até vestir Valentino…
Mas o diabo vai ser sempre o diabo!!!
bjs
Chico, adorei o seu texto. Tá, esse foi excessivamente pessoal, mas o que eu mais gosto nos seus textos é que você mesmo fazendo uma crítica “normal” ainda permite se expor, botar um pouco da sua experiência ao ver o filme e com o que sentiu durante ele, o que muita gente tem pavor a fazer isso, achando que deste modo está arruindando o texto. Por isso até apesar de nao ter gostado nada do Dama na Água adorei o seu texto sobre ele e mesmo não concordando com as razões, acho elas extremamente válidas. Funcionou para você, não para mim. Simples assim. Cinema não é brincadeira, claro, mas também não é 100% teoria. Abraços!
Oi Chico! Embora não por adoção, como você, também sou baiano de Salvador. E, por extensão, sofredor com as dificuldades de ser cinéfilo nesta terra de todos os santos (embora é preciso reconhecer que o cenário já foi bem mais árido nos tempos d’antanho :-)). Abraços!
Então acho que vou me identificar (ou ao menos sair “reflexivo” da sessão) também. Já vi e passei por cada coisa nos meus estágios…
Julio, você é de onde? Eu moro na Bahia, mas nasci em Maceió. Volte por aqui quando quiser.
É, Michel, eu raramente faço textos nesse tom, mas geralmente nunca fujo do passional em tudo o que eu escrevo.
Diego, claro que sim.
Belo texto! Aliás, gostaria de parabenizá-lo pelo blog (que só agora “descubro”, algo tardiamente); é sempre bom ver alguém escrever sobre cinema com inteligência, conhecimento de causa e sensibilidade. Em se tratando de um conterrâneo, então, o prazer é dobrado!
Quem escreve frequentemente sempre acaba vez ou outra colocando coisas muito pessoais, depois acha que falou demais, mas aí é tarde. Por outro lado, já temos muitos amigos que nos acompanham diariamente e que vão captar até melhor essas informações que passamos sobre um momento X ou Y…
Caramba. Suponho que o baque também exista para quem está começando há pouco tempo.