Acontece de 6 a 14 de outubro, um dos melhores festivais do Brasil, o Olhar de Cinema. A edição de 2021, a exemplo da que aconteceu no ano passado, será toda online e os filmes podem ser comprados por R$ 5 cada. São duas exibições por filme (períodos de 24h, das 6h às 5h59). Chequem as datas de cada filme. Os longas de abertura e encerramento têm horários diferentes e uma só exibição, das 20h às 19h59.

“Um Céu Tão Nublado” ★★★½, de Álvaro F. Pulpeiro

A comparação talvez nem seja tão justa, mas “Um Céu Tão Nublado” me remeteu aos documentários que Werner Herzog fez nos anos 70, especialmente “Fata Morgana”. Em ambos os casos, os diretores tentam encontrar as imagens certas para retratar não um fato ou um personagem, mas um sentimento, uma sensação. A diferença é que o doc de Herzog tinha ambições mais filosóficas, enquanto o longa de Álvaro F. Pupeiro pretende traduzir um país que teve a história engolida pela exploração de petróleo, a Venezuela. Por ser sobre um lugar, ou um sentimento em relação a ele, o filme passa reto pelos personagens que encontra, que nunca são protagonistas, mas peças do cenário. Pupeiro estar mais interessado no retrato, em imagens que simbolizam elementos de seu discurso, nos ecos dos discursos de Nicolás Maduro ouvidos no rádio. Por isso também, ele tenha um interesse especial pela fotografia, sempre belíssima, que combinada à trilha atmosférica ajuda a compor um quadro melancólico sobre uma nação que perdeu o interesse pelo indivíduo e que parece só ver à frente uma plataforma de petróleo.

“Conferência” ★★★, de Ivan I. Tverdovsky

“Conferência” é sobre seguir em frente e encarar velhos fantasmas. Pode parecer clichê, mas é exatamente isso que propõe Ivan I. Tverdovsky — e no mais óbvio dos formatos, o da conversa. Grande parte do filme é o encontro, a conferência do título, de pessoas que sobreviveram a um ataque terrorista. O diretor contrapõe seus depoimentos, passeando por traumas, saudades e arrependimentos, e, pouco a pouco, vai revelando os segredos de sua protagonista, a monja que chega a Moscou para coordenar o evento e que carrega controvérsias que a afastaram da filha. Impressiona a interpretação de Natalya Pavlenko, cuja personagem aparentemente passiva se transforma ao longo do filme e aos olhos do espectador. É um filme de texto, mas que encontra nos detalhes várias imagens realmente cinematográficas, além de, por outro lado, reviver o episódio da crise de reféns no Teatro Dubrovka filmando este encontro de sobreviventes num teatro, dobrando nossa condição de espectadores.

“Deus Tem AIDS” ★★★, de Fabio Leal e Gustavo Vinagre

“Deus Tem AIDS” é um título mais provocativo do que o filme que ele batiza e isso não é exatamente uma crítica. O documentário de Fabio Leal e Gustavo Vinagre se vale da imensa liberdade que este título vende para fazer um retrato importante de pessoas que convivem com o HIV, um assunto ainda hoje mitificado e pouco debatido. A maior parte dos personagens escolhidos pela dupla é de pessoas de uma ou de outra maneira ligadas à arte, o que fala mais próximo do universo dos diretores e garante uma particularidade especial ao projeto. É um filme sobre olhar para os seus e defendê-los e isso tem um mérito grande. O que deixa a desejar é que a provocação que o documentário anuncia em seu título não tem tanto desenvolvimento, como se a própria feitura deste filme já fosse um ato revolucionário em si, o que não deixa de ser verdade, mesmo quando assume um formato mais acadêmico. Os momentos mais ousados chegam somente na reta final, em duas performances bastante subversivas — a primeira em especial extremamente e intencionalmente incômoda, cuja agressividade chama atenção para a sexualidade de quem convive com o HIV. Independentemente de se funcionam para o espectador, são nestes momentos que o filme realmente oferece a radicalidade que vende.

“O Dia da Posse” ★★, de Allan Ribeiro

Mal nasceu, o filme de quarentena precisa ser reinventado. Nem tudo, nem todos valem ou justificam um filme. Entendo que o objetivo aqui é desvendar uma geração que surgiu atrás da tela de um computador, que se construiu individualista por causa de um progressivo e inevitável processo de isolamento do mundo, mas se o formato espontâneo pero no mucho propõe uma suposta liberdade criativa, ele também deixa muito clara a superficialidade de Brendo como personagem e do filme como obra. No fim das contas, estamos falando de uma geração vazia, poser, que se agarra ao discurso das minorias, mas parece não saber muito bem o que fazer com isso? Parece pouco.

“Esqui” ★★★½, de Manque la Banca

A mistura de formatos, texturas e registros garante uma visão única e multifacetada de Bariloche, que não apenas documenta a vida real para além do cartão postal da estação de esqui como oferece um passeio sério, mas bem humorado pela história de massacre étnico, pela cultura e pela mitologia da região num exercício de linguagem bem particular. Manque la Banca faz questão de bagunçar suas expectativas reinventar seu filme o tempo todo, indo do documentário ao filme experimental, passando sem pudores pelo vídeo amador.

“Estilhaços” ★★½, de Natalia Garayalde

Primeiro, é impressionantemente rico o material que a diretora tem em mãos — material que ela mesma e seus familiares registraram quando ela ainda era uma criança. Segundo, é bem interessante tentar articular uma narrativa a partir destes registros — o filme tenta mostrar o impacto da explosão de uma fábrica de munição na cidade natal da diretora. Mas em algum momento o suporte não consegue abrigar todo o conteúdo e o filme não sabe muito bem para onde ir.

“A Matéria Noturna” ★★½, de Bernard Lessa

A primeira meia hora do filme, que se dedica a acompanhar a personagem de Shirlene Paixão, é bem feliz em retratar uma mulher que não sabe que direção seguir, nem se quer seguir alguma direção, numa jornada meio inconsciente de auto-isolamento que aos poucos vai ganhando um aspecto de terror psicológico. A chegada do outro protagonista, Welket Bungué, propositadamente desequilibra o filme, mas o efeito não é tão eficiente como parece planejado: os dilemas da outra personagem, que pareciam tão promissores, são interrompidas tão bruscamente quanto o envolvimento dos dois, como se o filme abrisse mão do que tinha de mais interessante. Esse segundo filme que surge depois traz questões válidas, mas o que se perdeu nunca volta com a mesma força.

“Mirador” ★★★, de Bruno Costa

A primeira exibição de “Mirador” aconteceu na Mostra Tiradentes, no começo do ano, onde o longa de Bruno Costa foi o título mais “esquisito” em cartaz. Esquisito justamente por ser narrativa e estilisticamente bem mais formal do que seus colegas de festival. Rodeado por experimentos de linguagem (alguns que não deram tão certo assim), a simplicidade deste filme chamou a atenção. É o primeiro longa-metragem do diretor, que aposta no material humano e num cinema mais tradicional, para dar corpo a discussões contemporâneas. Bruno Costa contra a história de Maycon, um boxeador que, em meio ao sonho de voltar aos ringues, se vê obrigado a assumir o papel que sempre evitou, o de pai. Um argumento visto muitas vezes, mas que, nesta versão brasileira, ganha perspectivas bem interessantes: “Mirador” é um filme com pé no chão, que nunca esquece que seu protagonista é um homem nordestino, negro, pobre, que vive do subemprego, e que agora precisa lidar com uma questão fundamental aos dias de hoje: o papel e poder que a mulher adquiriu na sociedade. A ex-namorada de Maycon decidiu ir embora porque, entre outras coisas, ele, apesar das boas intenções, nunca tomou para si responsabilidades. O roteiro, escrito pelo diretor e por William Biagioli, parece querer provocar o espectador: a ex nunca é tratada como vilã e a mensagem é mais ou menos que os efeitos das transformações sociais chegam para todos, inclusive aqueles de quem os outros problemas já renderiam filmes inteiros. É uma sofisticação de pensamento camuflada numa narrativa linear acompanhada por uma câmera documental. Edilson Silva tem uma das melhores interpretações do ano e é fundamental para dar uma sensibilidade pouco óbvia ao personagem que, além de sustentar a si mesmo e à filha, é obrigado a mergulhar num universo feminino e infantil com o qual não tem qualquer intimidade.

“O Protetor do Irmão” ★★★, de Ferit Karahan

“O Protetor do Irmão” vem de uma tradição do cinema de cunho social em que um dos principais objetivos é a denúncia de uma situação. No caso, o filme de Ferit Karahan quer mostrar a rotina de brutalidade num internato para meninos de origem curda na Turquia. O diretor convida o espectador para acompanhar um dia-a-dia cheio de pequenos episódios de agressividade, intolerância e punições, o que faz com menos maniqueísmo do que o normal, assumindo um tom documental, economicamente dramático, mesmo que os personagens sejam retratados de maneira um tanto caricata. Mas Karahan equilibra esse tour de horror com o retrato da bela amizade entre Yusuf e Memo, que evoca alguns temas e tons do cinema iraniano, emprestando ao filme um tom humanista que contrasta com o resto. Quando se estabelece a situação-chave do roteiro, a influência parece estar mais para os cineastas romenos e suas investigações dos processos burocráticos que explicam elementos da trama. São três caminhos interessantes porque, em alguma medida, são bem diferentes entre si, o que dá ao filme um vigor particular. O problema é que a explicação para esta situação-chave é lançada nos últimos minutos de filme, numa sequência de diálogos cheia de revelações, sem muita preparação, o que se opõe à estrutura lenta e anti-climática do projeto. Além disso, a “revelação” em si toma um rumo esquisito, que se afasta da proposta inicial da denúncia e se aproxima de um retrato do acaso. Acho que vou mudar essa cotação.

“Rio Doce” ★★★, de Fellipe Fernandes

Quem nasceu no eixo Rio-São Paulo, dificilmente vai conseguir entender o que significa ouvir seu sotaque num filme. Embora o cinema nordestino, especialmente o pernambucano, tenha dado muitos frutos nas últimas décadas, nem sempre o cinema mais narrativo, que mira mais no naturalismo, consegue escapar do formato de comédia popularesca. “Rio Doce” é uma exceção a essa regra: é um drama simples sobre um homem de origem simples que vive enforcado pela realidade e descobre sua origem somente já adulto. Fellipe Fernandes, em seu primeiro longa, mantém o tom baixo, mas não se poupa de cutucar o cinema social: alfineta a sociedade branca colonialista e educada recifense, nordestina, expondo sua superficialidade e sua fragilidade, ao mesmo tempo que esta sociedade paga de ética. Nos apresenta também um personagem silencioso que carrega nas costas o peso das dificuldades financeiras, do fracasso como marido, da ausência como pai. O “evento” do filme, que seria central para o desenvolvimento da trama em qualquer outro projeto, é apenas um detalhe novo na rotina do protagonista, que desarruma mais um pouco sua vida e que, mais que qualquer coisa, expõe a relação entre classes no Nordeste do Brasil. Num momento em que a atenção aos personagens e às relações entre eles está meio desgastada na narrativa tradicional do cinema brasileiro, “Rio Doce” nos mostra um cuidado raro no retrato de um homem negro, pobre, cujos dramas vão mais além do que o clichê do envolvimento com a criminalidade. Ela está presente, como um fantasma, mas o personagem vivido bem dignamente pelo rapper Okado do Canal tem muito mais com o que se preocupar. Faz um par bem interessante com “Mirador”, outro belo filme sobre um nordestino.

“Rolê – Histórias dos Rolezinhos” ★★★, de Vladimir Seixas

O fenômeno dos rolezinhos é o ponto de partida de um documentário bem mais ambicioso. A partir das reações de jovens negros, que começaram a entender que poderiam devolver à sociedade o preconceito que recebem como manifestação de força, marcação de território e a um simples “eu estou aqui”, Vladimir Seixas encontra um caminho do meio entre o documentário social e o filme popular para registrar a discriminação diária vivida pelas populações periféricas. Começa mostrando a repercussão dos rolezinhos na imprensa e depois vai decifrando aqueles movimentos, encontrando personagens, até chegar aos novos formatos de protesto. Embora demore um pouco para estabelecer uma linguagem, tem um discurso tão envolvente que coopta o espectador desde os primeiros minutos.

“O Sonho do Inútil” ★★★½, de José Marques de Carvalho Jr

A beleza de um filme pode estar em vários lugares: no cuidado com as imagens; na maneira de apresentar e relacionar seus personagens; na fluidez com que uma narrativa se faz envolvente para o espectador. “O Sonho do Inútil”, contrariando todas as expectativas que um documentário sobre um grupo que fazia vídeos estúpidos poderia carregar, traz quase todas estas características. Escrito e dirigido por José Marques de Carvalho Jr, espécie de cabeça da equipe, o filme sabe como mergulhar nas vidas de cada um dos integrantes da trupe, navegando não apenas por suas trajetórias depois que eles se separaram, mas buscando entender as realidades familiares e sociais que construíram suas vidas. É realmente tocante como o diretor consegue capturar a alma de cada um de seus amigos e mostrar o sentimento que existe entre eles, mesmo depois de anos afastados. Mas este não é apenas um filme de afeto, também é uma obra que registra a vida na periferia com dignidade e evitando um olhar mais clichê. Em um determinado momento, um personagem diz que “não há plano B, o importante é o agora”. E essa frase, que falava de sua carreira musical, de repente reflete a história de todos aqueles garotos, cujos vídeos arriscados eram nada mais do que um maneira de marcar território, chamar atenção, ser vistos. O diretor é muito inteligente na maneira como costura a narrativa a partir dos dispositivos simples que têm em mãos: “O Sonho do Inútil” sempre parece um filme “caseiro”, mas nunca um filme amador.

“Tzarevna Descamada” ★★, de Uldus Bakhtiozina

O bom gosto visual e a competência para criar um ambiente de delírio são os pontos fortes de “Tzarevna Descamada”, mas o filme da russa Uldus Bakhtiozina tem uma certa dificuldade em encontrar algum tipo de densidade em sua brincadeira. A sofisticação da direção de arte e da fotografia morre nela mesma, como se Bakhtiozina fosse incapaz de dar corpo à fantasia como Tim Burton ou mesmo Guy Maddin. Vazio, mas bonito que só.

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