Há cerca de um mês, quando Crash foi eleito como pior filme do ano pela Liga dos Blogues Cinematográficos, eu me senti orgulhoso. Fiquei orgulhoso de, além de mim, a maior parte dos meus colegas terem percebido como o filme de Paul Haggis é um embuste. O Alfred de pior filme tinha desmascarado o texto ruim de um filme que se vendia pelo quão revelador ele era, que se erguia pela denúncia da intolerância étnica e pela indignação com relação ao jogo de poder que manipula a América e o mundo. Um filme que se vendia. E para vender seu filme, o diretor de Crash, o autor de Crash jogou o mais baixo que pode: quis determinar que ninguém escapa do destino de pecar, de ser mau, de se corromper. A corrupção (não a monetária e sim a moral) é questão de tempo. Paul Haggis provavelmente acredita no que escreveu talvez por ser o caso dele.

Os Estados Unidos são o país mais frágil do mundo. Haggis não teve grandes dificuldades de convencer este país de como sua história era importante. Cooptou astros diversos, de Matt Dillon a Brendan Fraser, de Don Cheadle a Sandra Bullock. Quando estreou, caiu nas graças da crítica, que enxergava no filme um exemplo corajoso de manifestação política. Este abraço a Crash somente ganhou força quando se descobriu que 2005 era um ano de contestação. Era um ano de projetos engajados, de ousadia, de posicionamento social. Um a um, caíram todos os grandes favoritos a filme do ano. Num ano em que George Clooney faz um maravilhoso libelo contra o macarthismo por que se importar com as memórias plastificadas de uma gueixa quase ocidental? Num ano em que Steven Spielberg acusa sua própria etnia de intolerância qual a relevância da história de Pocahontas? Num ano em que Ang Lee faz de um conto de amor entre dois homens uma história de amor universal seria preciso dezenas de macacos gigantes para chamarem mais atenção.

E foi este último, o tal do conto de amor, o filme que mais ousou. Ousou ao se aproveitar do que é mais formal para escrever a história mais bonita, o roteiro mais acertado, usar a câmera sem alarde. O Segredo de Brokeback Mountain ousou mostrar que não há diferenças. Foi tão bem sucedido que se pode achar dezenas de textos de homens que o defendem com paixão embora não façam a menor questão de viver ou ver algo semelhante ao que aparece na tela. Brokeback Mountain, como grande cinema que é, ultrapassou os limites da tela e cumpriu sua última função social na noite deste domingo, quando perdeu justamente para Crash o Oscar de melhor filme do ano. Foi este prêmio que escancarou o quanto ainda é insuportável ver dois homens se beijando mesmo num mundo tão moderno como o que vivemos. Na velharia que ainda domina a Academia, a corrida interior para eleger uma desculpa para não premiar o filme de Ang Lee terminou quando alguém decidiu que seria perfeito apontar o filme com maior “conteúdo social” como vencedor.

Um disfarce primoroso. Esconder a homofobia – e com ela a estupidez de um grupo que já deu prêmio a Uma Mente Brilhante – por trás de posicionamento político. Que grande golpe! É realmente inacreditável perceber que a Academia não tem o menor pudor de ir contra a corrente generalizada, de parecer antiga, arcaica e burra apenas para não aceitar que um filme com temática gay pudesse ser o melhor do ano. Se George Clooney ou Steven Spielberg, ainda que eu ache seus belos trabalhos inferiores ao de Ang Lee, tivessem ganho, este texto não existiria. Seriam dois filmes honestos e, estes sim, importantes e ousados, premiados. Mas ver a aberração de Crash ganhar de um filme tão honestamente simples e imensamente superior como O Segredo de Brokeback Mountain é ter certeza de como tudo ainda continua tão errado.

A festa

Jon Stewart é excelente. O melhor apresentador de todos os Oscars que eu vi. Os resultados foram, de uma maneira geral, bastante previsíveis. Mais do que nunca, eu diria. Foi ruim ver a fotografia esquizofrênica de Memórias de uma Gueixa vencer, mas foi bonito assistir à belíssima trilha de Brokeback Mountain ser premiada. Os prêmios de direção de arte e figurinos não eram suficientes? E mesmo que eu prefira David Strathairn e Heath Ledger, Philip Seymour Hoffman mereceu seu prêmio. O mesmo pode ser dito de Reese Whitterspoon, num ano fraco para atrizes. George Clooney estava muito bem em Syriana, e Rachel Weisz, encantadora, em O Jardineiro Fiel. Os pecados vieram quando a os homens-bomba da Palestina perderam o Oscar para as criancinhas sul-africanas ou a montagem e o roteiro de Crash foram eleitos. E Nárnia, com seu trabalho meia-boca tirar a maquiagem de Star Wars também foi ruim. King Kong ganhou todos os técnicos deixando Guerra dos Mundos, igualmente merecedor sem um só prêmio. Um dos melhores momentos da noite foi a música do cafetão ganhar o prêmio. Ah, Brokeback Mountain levou roteiro adaptado. Que ousadia, não?

P.S.: sabe Ang, eu ainda acho que você venceu.

Comentários

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44 comentários sobre “Oscar 2006: o bom, o mau… que feio!”

  1. Eu juro que quando vi a cara do Nicholson achei que ele tava fazendo uma brincadeira. Eu fiquei muito puto quando Crash ganhou, nem Chicago eu odiava tanto. Acho que foi preconceito da academia com um filme gay. A cerimonia foi muito boa, bem apresentada. Queria que a cerimonia desorganizada do ano passado fosse nesse, pra comteplar a vitoria de Crash.

  2. Premiar Crash foi um erro sim. Crash nao tem um apoio muito forte de criticos, nao é o mais assistido. Nao sei quem esta apoiando esse filme. O mais estranho desse Oscar é que os premios foram divididos demais. Como se tudo fosse muito bom, ou muito ruim. Capote e Good Night mereciam muito mais o Melhor Filme do que Crash. Foi uma pena. O Oscar deixou passar a oportunidade de premiar a arte. De ser considerada um bom award show, todos os premios escolhem o Brokeback, menos o Oscar. No Rotten Tomatoes, o Crash esta com apenas 77% (igual a Mente Brilahnte), enquanto os outros indicados tem no minimo 87%. Fazer o que…

  3. Pois é, Bombeiro. Injustiça braba.
    Mas discordo de você (e de tantos) quanto a Crash. Não acho que o filme se venda como panteão de verdade, não acho que Haggis se pretenda determinista: mais que denúncia generalizada, eu vejo um retrato – de um momento, de um espaço, de uma parte. Nunca enxerguei o filme como um todo arquetípico assim.
    Também não acho que Brokeback seja cinema de primeira. O filme dialoga comigo (e com muita gente) por razões muito particulares, mas o alarde é exagerado.
    Hollywood é retardada, como o Marlos disse. E sabe o que é pior? Eu adoraria pensar que a não-premiação do favorito chamaria mais atenção para a questão… Mas, sinceramente, duvido.

  4. Não acho Crash um filme ruim, Chico. Mas assim como você, ainda acredito que Ang Lee é o grande vencedor… e Brokeback é o melhor filme. Eu já tinha lido que Paradise Now estaria fora da lista de ganhadores, mas confesso que foi um choque assistir “Crash” (fiquei tão pasmo quanto o seu elenco na hora que Jack abriu o envelope) levar o maior prêmio da noite. E também gostaria de assistir o David Strathairn levando o prêmio, mesmo considerando o Philip Seymour Hoffman um grande Capote.

  5. Eu concordo e discordo. Não acho crash um filme tão ruim. aliás… acho um filme bom, muito bom. Que peca pela pretensão (que não é algo ruim desde que não seja excessiva, como foi o caso dele) e por forçar a barra aqui e ali na defesa da tese de que todos possuem a moral frágil. Acho que você erra Chico ao se degladiar demais contra a teoria trabalhada no filme, e menos o filme propriamente dito. Acho que, independente do que é discutido lá, se é uma defesa do neonazimos ou dos direitos humanos, o filme é bom. Para alguns, muito bom. Mas concordo que esse diretor é canastrão. Assim como me era canastrão o roteiro de Menina de Ouro que ele também assinou.

    Discordo também quanto a Brokeback Mountain. Que é bom também. Muito bom até. Mas que parecem tentar ver nele algo a mais do que ele realmente mostra. Não sei se por amor dos cinéfilos para com Ang Lee e uma grande torcida para que ele seja reconhecido. Eu tenho certeza que ele é capaz de fazer coisa bem melhor e ainda vai fazer.

    Mas concordo que a premiação a Crash foi um golpe contra a causa gay. Não concordo que Brokeback merecia todo o auê feito em cima dele, mas se fizeram, chega a ser um crime não premiá-lo. E a Academia só mostrou mais uma vez o quanto ela é retardada.

    Na minha opinião que de nada vale, o grande injustiçado da noite continua sendo O Jardineiro Fiel. Que merecia muito mais indicações, inclusive a de melhor filme, que lhe foi tomada poucos dias após o Globo de Ouro por Crash. E assim perdeu essa sorte de terem como argumento mais forte para a premiação deste ano o quê social. Por pouco não tivemos Fernando Meireles agradecendo lá.

  6. diferente da maioria por aqui, eu gosto de crash. eu vi o filme ontem mesmo (demorei a ver porque me falavam tao mal que nao me animava muito, mas gostei): ele é pulsante JUSTAMENTE por conta da sua imaturidade. ele é como aquela pessoa que acabou de se descobrir politizada, e apesar de por vezes paracer xiita, e por tantas outras, boboca e ingênua, ao se avaliar o que ela diz, provavelmente mais profundamente do que ela mesma, não há muito como argumentar que o conteúdo está errado. acho um filme importante mas…

    … BROKEBACK é um filme muito mais importante. e é um melhor filme: mais redondo, mais bem acabado, mais maduro. e que se valoriza por sua “classe”, certa tradição narrativa, com um tema tao espinhoso. nesse sentido, Brokeback, se fosse uma pessoa, seria aquela engajada e mais madura, que domina os artifícios todos e os usa a seu favor. Ele é o inverso de CRASH: faz alarde a partir de silêncio. e é por isso que é mais transgressor.

    eu acredito em homofobia, sim: o filme foi tão alardeado e tão cantado o “já ganhou”, tão abraçado pela comunidade gay, que o prêmio pra CRASH não deixa de ser um “cala a boca, viado”, literalmente. uma homofobia que se esconde atrás de certo “eu votei no mais pluralmente engajado”.

    como o controvertido beijo que não houve na novela das oito, brokeback não ganhou o oscar. mas sua perda só sustenta sua permanente transgressão. ontem, como o beijo que não houve há alguns meses atrás, ele entrou pra história do oscar tanto ou até mais se tivesse levado a estatueta.

    e viva ennis e jack.

    ps pra quem é obrigado a ver pela globo, como eu: O QUE É O JOSÉ WILKER?

    beijos do LeoN

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