Silêncio

A razão pela qual Martin Scorsese parece ter se atraído por este projeto, de transformar o livro Silêncio num filme, é a mesma pela qual ele não consegue dar conta desta ambição: o contraditório discurso de fé do protagonista. Parece muito sedutor querer materializar o pensamento do personagem, o padre Rodrigues, que realmente acredita que sua crença em Deus está acima de todas as coisas, e ao mesmo tempo mostrar que este é um discurso colonialista de um grupo que pretende trazer sua fé prontinha, embalada como “a fé verdadeira” para um povo que, secularmente, já tem outras crenças. Essa dicotomia provavelmente deve ter interessado muito ao cineasta, que apesar de ter uma formação cristã e católica muito forte, sempre foi um homem de espírito contestador, tanto é que fez um filme como A Última Tentação de Cristo.

Em Silêncio, o problema, a meu ver, é conseguir equilibrar estas duas pontas: discurso de fé e a problematização desse discurso. Na maior parte do filme, o que se sobressai é o discurso do protagonista, que termina se confundindo com o discurso do próprio filme, e, consequentemente, vira o discurso de Scorsese. E, para dar corpo a este discurso, as saídas narrativas são transformar os governantes japoneses, aqueles que não permitem que o personagem mantenha e propague sua fé, em vilões. Se eles realmente usam a violência para coagir os padres jesuítas, eles fazem isso como reação a um povo estrangeiro que invade o país deles para impor um novo pensamento.

Os questionamentos do Scorsese parecem, durante quase todo o filme, sufocados por esse discurso de fé. Tudo fica muito nas entrelinhas. Há dois momentos em que o diretor traz essas questões para o debate principal, mas os argumentos terminam mais como explicações para o espectador sobre o como e por que as coisas se desenrolaram do que como discussão ética. Scorsese parece incomodado o tempo inteiro com a mensagem que o filme está passando, mas não consegue equilibrar os discursos. E o que é mais problemático: Andrew Garfield, apesar de esforçado, nunca parece ter a maturidade do personagem a ponto de nos convencer do que ele acredita.

Falta estofo a Garfield para encarar a complexidade do protagonista e falta uma definição maior de que personagem Liam Neeson está interpretando. Se Garfield parece ingênuo, Neeson tem uma postura diferente a cada nova cena. Scorsese só parece estar à vontade na cena em que Neeson tenta traduzir a maneira como o japonês lida com religião e espiritualidade. Embora o discurso seja novamente violento, ele oferece novas nuances para a discussão, justifica de uma maneira torta, a visão simplista de homem de fé contra “bárbaros ateus”. Mais o buraco é mais embaixo.

Já faz um tempo que o cineasta, utilizando uma expressão não tão precisa, dirige no piloto automático. Todos seus filmes têm grandes momentos visuais e uma imensa competência em executar o que ele imagina para a história, mas seus últimos trabalhos pecam por um certo distanciamento do objeto. Scorsese é tão profissional que, muitas vezes, parece olhar com frieza para o que está filmando. Mesmo longas de conteúdo necessariamente mais emocional, como A Invenção de Hugo Cabret, parecem programados demais, calculados em excesso.

Isso não significa que Scorsese dirija mal. Obviamente ele é um grande diretor e um dos mais profundos conhecedores da história do cinema, mas parece mostrar que suas obsessões e seu perfeccionismo algumas vezes atrapalham a maneira como ele se relaciona com seus objetos. Silêncio é um bom exemplo desta dicotomia: mesmo no meio de uma produção cheia de percalços, o cineasta se esforça para dar ao filme um peso de estudo sobre a fé do protagonista, embora nunca realmente consiga dar conta desta missão.

Apesar de sua formação, Scorsese falha em materializar a crença de Rodrigues, o missionário jesuíta português enviado ao Japão feudal para recuperar o padre Ferreira, religioso que desapareceu em missão de catequese. Embora siga a cartilha do livro de Shusaku Endō, autor católico japonês cuja história tenta provar a fé do personagem principal mesmo diante das situações mais adversas, Scorsese não parece acreditar muito no que está filmando ou talvez esteja mais preocupado com o rigor estético, que permanece intacto.

A impressão é de que o filme nunca entra realmente no espírito do protagonista. Parece cético ou pouco interessado em relação a sua religiosidade. Os dilemas que os padres e os “convertidos” enfrentam, que passam necessariamente por negar sua fé em público, são filmados de forma apática por Scorsese. Embora as cenas procurem mostrar o passo-a-passo desses momentos de provação dos personagens, o timing e a intensidade dessas sequências são prejudicados pela falta de densidade das performances e por uma certa burocracia na maneira de filmar.

Silêncio, o livro, é considerado a obra-prima de Endō, mas sua natureza colonialista talvez tenha sido um problema para esta segunda adaptação para o cinema. Existe uma japonesa, dos anos 70, dirigida por Masahiro Shinoda, que parece bem mais à vontade para se debruçar sobre o tema. Se tem um discurso simplesmente confuso ou se parece impróprio para uma época em que a diversidade religiosa é cada vez mais aceita, a certeza em relação a Silêncio é de que Scorsese não conseguiu deixar claro o que ele pensa sobre aquele personagem e sobre aquelas contradições.

Silêncio EstrelinhaEstrelinha½
[Silence, Martin Scorsese, 2016]

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