Tatuagem

Onde Hilton Lacerda estava escondido nos últimos dez anos? Bastou o roteirista sair da sombra de Cláudio Assis, de quem escreveu todos os longas, para se revelar um provocador romântico com uma extrema consciência do mundo em que vive, mas com uma leveza para dar fluxo a suas ideias e uma sofisticação sem par para materializar as cenas que imagina. Tatuagem, sua primeira ficção, é um assombro. Seja pelo extremo cuidado com as imagens, a trilha e som; seja por causa do requinte do texto, atento ao Brasil de 1978, mas sem ranço sindicalista.

A sutileza, esse talento incomum que o diretor revela para movimentar sua história, deveria esbarrar na militância de Assis, para quem a provocação nunca foi suficiente. Era preciso ir para a guerra. Sem ter que dividir responsabilidades e méritos com o amigo, Lacerda fez um manifesto político apaixonado que, sem grandes eventos morais, acha numa pequena história sobre encontros e desencontros, o espaço ideal para dar voz ao autor. Ele veste as fantasias dos atores do grupo de teatro cuja trajetória acompanha para acomodar seu discurso libertário.

Várias vezes ao longo do filme, na boca de seu protagonista Clécio – Irandhir Santos, talvez o melhor ator brasileiro desta década -, o cineasta explica sua revolução. As apresentações e os números musicais que concebe em riqueza de detalhes para o filme são transgressão pura e simples. O mais radical deles é uma “ode ao cu”, reverenciado como instrumento revolucionário máximo. A cena, brilhantemente fotografada, assim como todo filme, é mais forte do que qualquer arroubo de Cláudio Assis. Lacerda contrapõe militares e artistas, mas são esses que se assumem como soldados. Soldados da mudança.

A cena de sexo entre Clécio e Fininha, personagem do novato – e ótimo – Jesuíta Barbosa, é belíssima: longa, coreografada como um balé, sensual e quase explícita. De uma ousadia que deixa qualquer Sergio Bianchi no chinelo. O momento, explosivo como quase tudo em Tatuagem, também é de uma delicadeza extrema como na cena em que o casal dança ao som de A Noite do Meu Bem. Mesmo quando recicla ideias e símbolos desgastados, como esta canção, Lacerda encontra o tom para encaixá-los na linha da vida de seu filme. História e trangressão caminham lado a lado. E de mãos dadas.

Da direção de fotografia ao desenho de som, da trilha sonora ao texto, das interpretações à montagem. Tudo é lindo e tudo é vivo em Tatuagem. Não existe escândalo na aproximação entre o diretor do grupo de teatro e o soldado. Não existe estranhamento no fato de um homossexual assumido ter tido um filho com uma mulher bem resolvida. Não existe tratamento diferente para as afetações e os trejeitos de personagens como Paulete. A viadagem também era a vida em 1978, diz Lacerda. Cabe ao mundo, atrasado, acompanhar.

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[Tatuagem, Hilton Lacerda, 2013]

Comentários

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6 comentários sobre “Tatuagem”

  1. “Bastou o roteirista sair da sombra de Cláudio Assis, de quem escreveu todos os longas, ”
    Frase realmente Troncha. Depende de qual lado se situa,no caso a Luz, sempre esteve presente, no Baile Perfumados,Arido Movie,febre do Rato…..

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