Últimas Conversas é infinitamente menos complexo do que Jogo de Cena, não tem um pingo da ousadia de Moscou, da força histórica de Cabra Marcado para Morrer ou da capacidade de retrato sociológico de Santo Forte e Edifício Master. É, inclusive, muito mais simples do que o muito simples As Canções, mas provavelmente o derradeiro filme assinado por Eduardo Coutinho tem, intrínseco a ele, um poder emocional jamais visto num documentário do cineasta, que desta vez envolve não apenas as histórias de seus entrevistados, mas a sua própria. Não é apenas seu último trabalho, mas ainda se assume como um filme-homenagem. Homenagem esta feita à revelia de quem o dirigiu.
A dicotomia é grande: Coutinho morreu antes de concluir o longa e cheio de dúvidas sobre o material. João Moreira Salles, seu discípulo no cinema e seu patrão no mundo dos negócios, assumiu o processo de finalização do filme e, ao lado da fiel escudeira do mestre, a montadora Jordana Berg, fez algo inédito: pela primeira vez em seu cinema, o maior documentarista do Brasil e um dos maiores cineastas do país, ele mesmo, se transformou em personagem, protagonista de seu próprio longa. A cena de abertura do longa é um depoimento do próprio Coutinho, gravado no mesmo cenário em que entrevistou jovens recém-chegados à vida adulta sobre o que os levou até ali e para onde eles pretendiam ir a partir dali.
Coutinho coloca em xeque a relevância do que ele havia gravado até então, sem saber que sua crise criativa seria um mote perfeito para Berg e Salles, “aposentado” da direção desde 2006, descortinassem seu cinema, revelando não só o processo, mas o homem por trás da câmera. A memória, que sempre foi tão fundamental para suas dissertações audiovisuais, desta vez, era também a sua. Ao longo de cada depoimento, seus parceiros elegem questões, comentários, dúvidas que ao mesmo tempo em que revelam um entrevistador completamente consciente de como conseguir a informação que precisa da maneira que precisa, ressaltam um homem completamente apaixonado pelo ser humano. As deixas, inclusive as que falam sobre a morte, são aproveitadas de forma quase didática, mas respeitosa e eficiente.
Naquele que talvez seja seu filme mais simples, de que ele nem imaginava o formato final, Coutinho, sem saber – e da maneira mais natural possível -, costura um imenso e interminável debate sobre religião, verdade, amor e honestidade. Os temas são tão amplos e complexos que poucos cineastas em sã consciência ousariam discuti-los num mesmo filme sob o risco da falta de profundidade. Mas esses assuntos surgem tão espontaneamente no bate-papo com os entrevistados e nunca com a pretensão de dar uma palavra final sobre o que quer que seja que isso nem chega a incomodar. Essa naturalidade, que sempre foi uma marca do cineasta e que lhe permitiu coletar belos e emocionados depoimentos, parece ter sido a mira da equipe que concluiu o filme.
Os riscos eram grandes, mas o resultado, acima da média, além de coerente com a obra de Coutinho, ainda homenageia o cineasta e é um presente para o espectador.
Últimas Conversas ½
[Últimas Conversas, Eduardo Coutinho, 2015]
Um pensamento sobre “Últimas Conversas”