Histórias verdadeiras

Há poucas coisas tão puras quanto assistir a um filme com os olhos de um espectador comum. Existem muitos filmes que exploram justamente essa relação inocente do homem com o cinema de forma maniqueísta, manerista, simplória, que vencem – ou tentam vencer – pelo encanto fácil, pelas armadilhas dos clichês. Há poucos filmes que realmente remetem a um estado mais primário de relação com o espectador sem que isso ganhe qualquer contorno depreciativo. São esses filmes que desconstroem nosso discurso mais, digamos, científico, analítico, questionador. São eles que nos vencem pela força das personagens, pela simplicidade do texto, pela pureza.

Essa não é uma verdade universal. Um filme que se comunica dessa forma com alguém não vai necessariamente reprisar esta comunicação com outra pessoa. O fato é que nunca se sabe o quanto e como um filme vai se manifestar para uma pessoa. Mas quando isso acontece há algo de realmente especial. É quando a história nos envolve de tal forma que por segundos que sejam nós esquecemos a moldura da tela e olhamos diretamente para dentro dela. É se identificar com os atores, se enxergar em situações semelhantes, se entregar ao choro, às vezes descontrolado, pelo simples motivo do contato. O que dizer quando um filme assim não é uma obra de ficção? Não se está falando de “histórias reais” refeitas para o cinema e, sim, de um documentário. Numa época em que os documentários são cada vez mais brutos sob a égide do realismo, isso é um feito enorme.

Doutores da Alegria é um filme surpreendente. Se de um lado tem enormes méritos em buscar certos artifícios narrativos para renovar sua linguagem (buscar seus interlocutores em situações do cotidiano claramente “armadas”; inventar cenários e molduras para seus depoimentos), do outro não consegue tanto efeito assim nessa busca. O maior crédito do filme é justamente quando esquece essa preocupação, que é válida, e aposta nas suas pequenas histórias. Histórias como a maravilhosa história do Gnomo Davi, minha cena favorita deste ano, e como a tocante história do pai alegre de um filho doente, capaz de fazer qualquer muralha vir abaixo. Doutores da Alegria é um grande filme não porque é um documentário, mas porque é de verdade.

Doutores da Alegria
Doutores da Alegria, Brasil, 2005.
Direção e Roteiro: Mara Mourão.
Fotografia: Helcio Alemão Nagamine. Montagem: Rodrigo Menecucci. Direção de Arte: Maurício Dias. Música: Arrigo Barnabé. Produção: Chris Bender e Mariane Maddalena. Site Oficial: Doutores da Alegria. Duração: 96 min.

nas picapes: Tui, a Funky Cat , dos DJs Môpa e André Urso, inspirada na gatinha que coabita minha casa (tem no cd do Amp, da MTV).

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