“Você é como se fosse da família”, diz a patroa Barbara para a empregada Val, nordestina que há anos trabalha em sua mansão, em São Paulo, em algum momento de Que Horas Ela Volta?. A frase da personagem de Karine Teles resume uma ideia que o inconsciente coletivo brasileiro estabeleceu para justificar ou amenizar uma relação direta de dominação, herdeira legítima de um sistema escravocrata, extinta ou resumida em boa parte do mundo civilizado. Anna Muylaert, dona de uma obra de muitas sutilezas, toca na ferida de uma maneira quase minimalista, buscando o estranhamento e a artificialidade das relações a partir da observação.
Durante pelo menos meia hora de filme, acompanhamos o dia-a-dia de Val, que abdicou do convívio da filha Jéssica, que ficou com sua família no Nordeste, e mora na casa dos patrões. As cenas são diretas e ela acaba quase sempre engolida pelo cenário, muito limpo e muito grande; pela rotina circular; e pelo tratamento frio, mas não muito da patroa, inconscientemente camuflado em pequenos afagos e elogios. Seu bálsamo é Fabinho, “menino mais bonito não tem no Brasil”, que ajudou a criar e que trata com beijos e cafunés.
A relação entre patrões e empregada foi forjada em duas vias. De um lado, ela realmente acredita que tem um espaço a mais naquela família, mas ao mesmo tempo sabe bem qual é “seu lugar”. De outro, parece mesmo que Barbara acha que Val não é apenas uma funcionária, mas uma espécie de agregada, uma convidada especial para a festa de sua vida. Desde, claro, que não ultrapasse limites (que ela nunca desenhou porque aparentemente os anos de convivência ensinaram a Val até que ponto sua condição permite que ela vá).
A direção é bastante feliz em não transformar as personagens em heroínas ou vilãs, mas tentar entender suas visões de mundo e ressaltar que existe um acordo velado de submissão, mutuamente aceito por todos os envolvidos. Este ponto de partida humaniza a relação e coloca Anna Muylaert numa posição mais cômoda para fazer uma crítica a um status quo generalizado. Mesmo quando Jéssica, a filha de Val entra em cena, despertando as divergências entre os dois mundos naquela casa, a cama já havia sido feita pelo roteiro, com as personagens já bem desenhadas e defendidas.
A interpretação de Regina Casé, que estava afastada havia 15 anos de um trabalho mais sério como atriz, é espetacular. Contida, delicada, atenta aos detalhes, ela incorpora um sotaque nordestino preciso e, apesar de ter uma formação cômica, se adapta com facilidade à economia dramática que Anna Muylaert impõe às cenas. Tudo é muito duro, mas sem autocomiseração ou saídas fáceis como o humor pelo humor. É uma performance até certo ponto arriscada porque Regina sai de sua zona de conforto e a personagem não segue o caminho mais fácil até o espectador. Dá muito certo exatamente por causa disso.
Além de Regina e Karine Teles, atriz que está em ascensão, o resto do elenco é bastante afinado. Camila Márdila, que faz a filha de Val, com a fúria adolescente a seu lado, prova que tem um grande potencial e o casting de Lourenço Mutarelli, o autor indie de O Cheiro do Ralo, que a princípio parece bem esquisito, combina com a estranheza de uma personagem incômoda sobre o qual é difícil ter uma opinião formada.
A chegada de Jessica à história, embora deixe o conflito mais evidente, o que necessariamente limita as opções da cineasta, nunca invalida ou banaliza as discussões. O roteiro continua explorando com sutileza os desdobramentos daquela relação complexa. Cabe a Michel Joelsas, o garoto de O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, filme escrito por Muylaert, o papel de principal elo emocional com Val. A relação entre ela e Fabinho parece tão verdadeira que fica fácil comprar essa história de que a empregada “é como se fosse da família”. Pena – ou ainda bem – que a vida não é filme.
Que Horas Ela Volta?
[Que Horas Ela Volta?, Anna Muylaert, 2015]
Adorei sua análise Chico! Será que devido aos prestígio que vem recebendo, Que Horas Ela Volta tem chance nos Globos e Oscars? e outra pergunta, você vê paralelo desta obra com outra ótima Casa Grande? parece que as discussões são similares; embora ache o trabalho de Anna Muylaert melhor sintetizado.
Obrigado, Marcus. Vejo, sim, imensas semelhanças temáticas entre os dois filmes, mas acho que os caminhos e os focos são diferentes. Gosto muito dos dois. Sobre as chances, vamos ver. O filme acaba de estrear nos EUA e chega com muitos elogios em Sundance e Berlim, o que abre os caminhos. Vamos ver se a distribuidora internacional aposta nele porque é preciso ter divulgação.