Campo Grande
[Campo Grande, Sandra Kogut, 2015]
Há oito anos, numa Mostra de Cinema como esta aqui, a cineasta Sandra Kogut estreava na ficção com uma arriscada e acertada adaptação de Guimarães Rosa. Miguilim, um dos contos de Campo Geral, se transformou em Mutum, uma obra delicadíssima sobre a brutalidade do sertão para com quem ainda não tem idade para entender o mundo. À época, a diretora já revelava um enorme talento para dirigir uma criança. A interpretação do pequeno Thiago da Silva Mariz no filme é encantadora, dona de nuances impressionantes para quem ainda nem tinha chegado à adolescência. Demorou quase uma década para Sandra voltar à direção. E mais uma vez ela invade o universo infantil e revela não um, mas dois atores mirins. A primeira que aparece em cena é a belezinha Rayane do Amaral, que Kogut nos faz acreditar que vai ser a protagonista do filme, mas que depois de alguns minutos entrega o posto para Ygor Manoel, que faz seu irmão no filme. Como o Thiago de Mutum, Ygor também interpreta um Ygor. Ele e a irmã, meninos pobres, foram deixados pela mãe na porta de um apartamento na zona sul do Rio de Janeiro. É lá onde mora Regina, personagem de Carla Ribas, uma mulher que começa a empacotar os móveis para deixar o lugar onde viveu durante muitos anos. Onde seu casamento começou e terminou e onde nasceu sua filha, que decidiu morar com o pai. O encontro dos meninos com Regina, um encontro filmado por Sandra Kogut com delicadeza, mas de maneira bastante realista é o que move Campo Grande. Se Thiago foi forçado a crescer diantes das agruras do Sertão no filme anterior da diretora, desta vez é Ygor que tem que encarar o mundo no meio da desesperança de uma cidade grande. A procura pela mãe, cheia de imprevisibilidades, é filmada com um olhar documental, graças ao trabalho de um dos maiores diretores de fotografia do país no momento, Ivo Lopes, que registra as ruas do Rio sem maneirismos. Um dos pontos fortes de Campo Grande é como Kogut conduz sua narrativa, sem se preocupar em amarrar cada momento desta procura pela mãe, sem fechar arestas ou desatar nós, sem a necessidade de didatizar a identificação entre a mulher e o menino, sem se render à tentação de deixar as duas crianças, treinadas pela preparadora de elenco Fátima Toledo, juntas o tempo todo. Carla Ribas talvez seja a grande atriz do ano, comovente em todas suas cenas. O filme é cheio de elipses e de pequenas histórias que não se completam, mas que não fazem falta ao propósito da diretora: registrar um Rio em obras (dos Jogos Olímpicos), uma mulher em reconstrução e dois meninos que querem apenas recomeçar suas vidas. A sequência final de Campo Grande aborta qualquer compromisso com um desfecho convencional. O filme se despede triste, mas feliz.
Desde Allá ½
[Desde Allá, Lorenzo Vigas, 2015]
O desfecho de Desde Allá pode ter antecipado pelo espectador se ele começar a elencar possibilidades lá pelo meio do filme. Mas isso não diminui a força e a coerência do primeiro longa de Lorenzo Vigas, que ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza em meio a vaias preconceituosas. O filme tem a produção do assumidamente fatalista cineasta mexicano Michel Franco, que também produziu a estreia de Gabriel Ripstein como diretor, 600 Milhas, e como o representante mexicano no Oscar de filme estrangeiro, Desde Allá não se deixa contaminar pelo pessimismo de seu financiador. O conto de Vigas sobre o homem que caça jovens pelas ruas de Caracas para serviços sexuais é pesado, triste e sombrio, mas parece amarrar todas essas características numa trama honesta consigo mesma do começo ao fim do filme. O chileno Alfredo Castro, dos filmes de Pablo Larraín, interpreta Armando, um homem de 50 anos que guarda mágoas nunca explicadas do pai que não vê há muito tempo e que volta a morar na cidade. Numa de suas tentativas de encontros sexuais, topa com Elder, um rapaz violento do subúrbio, uma cria das ruas e de uma família desestruturada. A violência passa a ser a base da relação entre os dois. Ela é a única forma de expressão que o jovem conhece e é ela que Armando busca. Vigas constrói esse duelo entre as personagens sempre como um embate duro, mas que abre espaço para que cada um demonstre suas fragilidades. O desfecho de Desde Allá pode até ser previsível, mas nunca deixa de fazer muito sentido.
Pardais
[Sparrows, Rúnar Rúnarsson, 2015]
Existe uma cena, aliás, uma sequência de duas cenas, perto do final de Pardais que transforma o segundo filme do islandês Rúnar Rúnarsson. Até então, o vencedor da Concha de Ouro, prêmio máximo no Festival de San Sebastian, parecia mais um drama de coming of age (perda da inocência, numa tradução aproximada) sobre um adolescente filho de pais separados que precisa voltar a morar com o pai numa cidadezinha ao norte do país depois que a mãe decide se mudar com o marido. Rúnarsson tem uma mão boa para dirigir atores, mas os temas que encontra não são muito diferentes dos dramas que já vimos em dezenas de filmes: o vácuo entre filho e pai alcoólatra, o sentimento de não pertencimento, as rixas com os jovens da mesma idade, a descoberta do amor e do sexo, o primeiro emprego (com uma participação sem muito sentido do croata Rade Serbedzija). Uma Islândia de paisagens espetaculares ajuda a manobrar os lugares comuns em mais uma história de um garoto que começa a sentir a chegada da vida adulta. Porém, é na sequência próxima ao final, que poderia facilmente cair num maniqueísmo hollywoodiano bem em voga nos últimos tempos, mas que é belamente concebida e dirigida por Rúnarsson, que o diretor encontra uma maneira simples e fortíssima de falar sobre o amadurecimento de Ari. O menino não vira adulto depois da primeira vez que faz sexo ou quando perde um parente de quem gosta bastante (outra cena bonita), mas quando toma uma decisão difícil apenas para fazer o bem a outra pessoa. É quando Ari “vira homem” e quando sentimos orgulho dele.
Vulcão
[Volcano, Rúnar Rúnarsson, 2011]
Sob o pretexto de fazer um Foco Nórdico, a 39ª edição da Mostra reprisa também o primeiro longa-metragem de Rúnarsson, que já havia sido exibido anos atrás. Se Pardais encontra suas delicadezas numa história cheia de clichês, Vulcão peca pelo excesso e pelo tom assumidamente pessimista. O filme que representou a Islândia na corrida pelo Oscar de filme estrangeiro em 2010 é mais um daqueles exemplares do cinema nórdico que mostram como os vikings gostam de celebrar sua tristeza e desesperança. O protagonista é um velho rabujento que, no ocaso da vida, começa a passar por uma série de provações sem abrir mão de suas particularidades e excentricidades. Sofre bastante, muito mesmo. E o diretor parece celebrar esse sofrimento. A trama parece ter “inspirado” a história de Amor, de Michael Haneke, realizado um ano depois e muito mais celebrado, A realização é convicente e o casal de protagonistas, Theodór Júlíusson e Margrét Helga Jóhannsdóttir, bastante talentoso, mas o filme não consegue oferecer nada além do que este subgênero, “o filme de idosos”, não tenha nos mostrado ao longo dos últimos cento e tantos anos de cinema.
Paulina ½
[La Patota, Santiago Mitre, 2015]
Paulina ganhou o prêmio da Semana da Crítica em Cannes muito por causa das polêmicas que alimenta em relação à violência sofrida por sua protagonista. Santiago Mitre, roteirista de três filmes de Pablo Trapero, sabe bem como levar os dilemas ao extremo, alimentando cada situação com uma postura discutível de sua protagonista, que ganhou uma ótima intérprete em Dolores Fonzi. Um dos pontos delicados do longa é quando percebemos o quanto Mitre é afeito a truques: ele abre o filme com uma discussão ideológica entre pai juiz e filha, que quer largar uma carreira promissora para fazer trabalhos sociais numa região pobre, afastada dos grandes centros. Esse dilema parece que vai estar na espinha dorsal da trama, mas Mitre transfere as discussões para uma questão mais impactante, a da violência sexual. Aborda todos os aspectos e tenta frustrar as expectativas do espectador com comportamentos e reações de Paulina. Um jogo um tanto maniqueísta, mas ainda assim interessante.