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Começa aqui minha cobertura da 44ª edição da Mostra de Cinema de São Paulo, a vigésima primeira da qual eu participo deste festival que definitivamente mudou minha vida. A ideia é fazer posts com textos, maiores ou menores, de alguns dos filmes que eu for assistindo. O festival abre oficialmente na quinta, numa sessão presencial, e a programação online começa a partir da madrugada do dia 23. No final do post, tem um pequeno tutorial com informações básicas sobre a Mostra 2020. Compartilhem comigo suas impressões nos comentários e deixem suas dicas também. Boa Mostra!

Dias ★★★★
Rizi, Tsai Ming-Liang, 2020

Um breve comentário que parece pertinente no caso deste filme: tentei, por várias vezes, encontrar as palavras certas para começar um texto sobre o novo trabalho de Tsai Ming-liang. Travei em todas elas. E resolvi fazer o que todo mundo faz hoje em dia, reclamar (de mim mesmo) nas redes sociais. Minha frase foi a seguinte: “às vezes um filme mexe tanto com você que te rouba as palavras“. Depois, refletindo sobre o assunto, percebi que minha confissão era a maneira mais legítima para que eu começasse um texto sobre este filme.

Os letreiros iniciais, antes das primeiras imagens, avisam que “Dias” não será apresentado com legendas. Faz sentido porque o filme de Tsai, o primeiro longa de ficção do diretor em sete anos, não rouba as palavras somente do espectador, mas de seus dois personagens. São pouquíssimos os diálogos do filme, que aparecem somente em momentos pontuais e não são essenciais para qualquer tipo de compreensão. As cenas, todas formadas por longos takes — alguém que contou diz que são apenas 46 num filmes de 128 minutos —  são guiadas basicamente pelas imagens e pelos sons do dia-a-dia.

Este é um filme sobre como somos engolidos pelo cotidiano, sobre como apagamos nossas próprias vozes para nos preservar e sobre como a conjuntura social e as estruturas seculares nos condenam à solidão. A cena que abre o longa, com Lee Kang-sheng, o eterno parceiro do cineasta malaio, olhando fixamente pela janela de casa. Sua expressão triste, séria, solitária, já indica que este não será um filme fácil. Lee já não é mais o rapaz dos primeiros filmes de Tsai. É um homem de mais de 50 anos que carrega as marcas do tempo no rosto e no corpo, elementos que o diretor, das mais variadas formas, explorou ao longo de toda uma filmografia.

Se este jovem senhor sente a paralisia do tempo e uma dor física da qual não consegue se livrar, o outro personagem do filme, um jovem imigrante de origem tailandesa, vive seus dias isolado em seu apartamento, cozinhando, dormindo, se protegendo como pode da hostilidade do mundo lá fora. Tsai conta a história dos dois paralelamente, detalhadamente, com uma simplicidade que contrasta com o grafismo das cenas que enquadra, até nos lembrar que um precisa sobreviver e o outro precisa existir. Se a cura para um corpo sozinho é outro corpo, uma caixinha de música pode guardar toda a humanidade de um homem.

Kubrick por Kubrick ★★★
Kubrick by Kubrick, Grégory Monro, 2020

Stanley Kubrick era um homem de poucas palavras, um artista recluso que raramente falava sobre sua obra. A oportunidade de ouvir o diretor explicando escolhas, contextos e intenções — numa entrevista concedida ao crítico de cinema francês Michel Ciment — é única e dá ao documentário de Grégory Monro um sabor especial. Ele articula com certa habilidade, mesmo que de um modo bem convencional, o depoimento do cineasta e testemunhos de atores e técnicos que trabalharam com ele, colhidos de fontes e épocas diferentes. Os principais filmes de Kubrick são comentados por ele mesmo, o que ajuda a desmistificar alguns aspectos de como o diretor construía seus projetos e acentua sua excentricidade nos bastidores. É um prato cheio para os cinéfilos, mas não oferece tanto em termos de análise de uma obra tão complexa.

Lua Vermelha ★★★
Lúa Vermella, Lois Patiño, 2020

No filme fantasma de Lois Patiño, o tempo parou para chorar um morto. Os planos, muitos deles fixos ou com delicados movimentos de câmera, congelam instantes de luto dos moradores de uma pequena vila na Galícia, onde um pescador que era um herói da comunidade saiu para o mar e nunca mais voltou. “Como se a maré atingisse nosso pescoço e quisesse nos estrangular”. Para o diretor, a tristeza que paralisa estas pessoas também resgata dois aspectos fundamentais intrínsecos àquela comunidade, sua relação com a natureza e sua devoção ao espiritual, ambas exploradas no recente cinema galego. Se as imagens e o rigor formal de Patiño parecem enclausurar algumas possibilidades de seu cinema e talvez até se acomodar num modelo pretensamente poético, o cineasta tem grande habilidade para transformar estas amarras em linguagem e investigar como as lendas e mitos ecoam ainda hoje e como se adaptam aos tempos. Os monstros estão por aí, soltos, esperando para dar o bote. “Que paz, que horror.”

Mães de Verdade ★★½
Asa ga Kuru, Naomi Kawase, 2020

Por mais que nunca abandone a negociação com o espiritual que já foi base de alguns de seus melhores filmes, faz algum tempo que Naomi Kawase se voltou para os “problemas da vida real” e mostra alguma dificuldade em encontrar as camadas certas para traduzir sua sensibilidade em questões tão práticas. Tanto “Sabor da Vida” quanto “Esplendor”, filmes que lidam com assuntos cotidianos e ao mesmo tempo delicados como a velhice e a cegueira, poderiam ser o espaço para a diretora exercitar o modo poético que vimos em suas primeiras obras, mas se refugiam numa dramaturgia novelesca quando parecem mirar num “cinema de afetos”. Essa fase segue firme em “Mães de Verdade”, embora a mão da cineasta pareça mais suave. Se parte do pragmatismo da disputa por uma criança, o novo filme, que discute a maternidade pelo ponto de vista da adoção, contrapõe mulheres que estão de lados diferentes — e por isso se movem pelo instinto –, mas que se reconhecem no sentimento. É um movimento que indica um caminho interessante e cheio de possibilidades, mas que Kawase não explora com as nuances que poderia. Em vez de desenvolver as personagens, ela escolhe o caminho mais didático: mostrar suas trajetórias até aquele ponto, usando texto e imagens convencionais que convidam à piedade. Embora haja respiros de uma sensibilidade mais refinada, aquela cineasta dos tempos de “Shara” ainda está distante.

Mamãe, Mamãe, Mamãe ★★★
Mamá Mamá Mamá, Sol Berruezo Pichon-Rivière, 2020

“Mamãe, Mamãe, Mamãe” poderia ser classificado, literalmente, como um “filme de menina”. Além de ter um elenco em que 90% das personagens são mulheres e uma equipe majoritariamente feminina, a diretora Sol Berruezo Pichon-Riviére não apenas conta a história, uma história de luto, da perspectiva de sua pequena protagonista. Ela parte de dentro de um universo íntimo, ora lúdico, ora cheio de dúvidas e incertezas de uma garota de dez anos que perdeu a irmãzinha. Não são poucos os filmes que investigam o vazio deixado pela morte a partir da perspectiva de uma criança, mas a cineasta argentina encontra uma maneira muito delicada de abordar o assunto, estabelecendo um ambiente quase que completamente infantil, onde os poucos adultos mal são convidados a entrar. Como observou o Alysson Oliveira, há ecos do que Sofia Coppola fez em “As Virgens Suicidas” com as personagens de ambos filmes criando uma espécie de sociedade secreta informal em que os afetos ditam as regras. Embora haja algumas escolhas um tanto óbvias, vindas sobretudo da inexperiência de uma diretora de primeira viagem, há uma sofisticação que atravessa a o campo visual, com uma câmera que parece apaixonada por aquelas meninas, e ganha corpo na sensibilidade com que a história é contada. Por mais que a pequena Cleo precise lidar com a imensa tristeza causada pela ausência da irmã, a chegada de suas três primas estabelece um mundo de ingenuidade e inocência onde ela pode recarregar suas forças e diminuir sua dor. As escolhas delicadas que se vê em todo o filme, de uma maneira bastante consciente, mostra que, por mais que este seja um primeiro longa, este “filme de menina” está mais para “filme de mulher”.

O Problema de Nascer ★★½
The Trouble With Being Born, Sandra Wollner, 2020

É interessante como Sandra Wollner sempre parece ter plena consciência da polêmica que atravessa “O Problema de Nascer”. Ela sabiamente esconde sua jovem atriz, de dez anos, atrás de um nome falso e uma máscara de silicone, mas quando o filme parece tentar decifrar como um homem que lida com a pedofilia encontra alternativas para satisfazer seu desejo, a história vira de cabeça pra baixo. Se está sempre claro que Elli, a garota-andróide interpretada pela fictícia Lena Watson, é a protagonista do filme e que, paralelamente ao debate sobre sua relação com o “pai”, há uma discussão sobre identidade, pertencimento, existência, temas até bastante comuns em filmes sobre seres artificiais, todo o primeiro tema desaparece justamente no momento da narrativa em que Wollner teria que desenvolvê-lo. Este movimento pode até ampliar o que o filme discute, mas não deixa de parecer uma fuga de um dos assuntos propostos. A diretora é bastante elegante visualmente e revela muita sensibilidade na escolha de como apresentar a primeira situação, mas é frustrante que ela evite resolver ou pelo menos se aprofundar nas questões que lança. Embora a segunda metade do longa tente lidar com o drama da personagem com dignidade, nem o apuro plástico é o mesmo.

Welcome to Chechnya ★★★
idem, David France, 2020

É comum se avaliar a qualidade de um documentário mais pela pertinência e a importância de seu tema do que por suas capacidades de construção a partir do registro. Mas, se alguém quiser fazer isso no caso de “Welcome do Chechnya”, é bem fácil de entender o porquê. A simples existência desse filme é um ato político e, num mundo onde as liberdades individuais são cada vez mais massacradas, é importante agir. O filme de David France documenta o trabalho de um grupo de voluntários para resgatar, abrigar e ajudar a homens e mulheres gays deixarem a Chechênia, uma república russa onde os homossexuais são vítimas de uma perseguição cultural, histórica e violenta — feita de maneira escancarada — e que terminou muitas e muitas vezes em mortes e desaparecimentos. France acompanhou alguns destes resgates e seus desdobramentos, o que transforma o documentário muitas vezes num filme de ação, mas estabelece o contexto em que a intolerância acontece, patrocinada pelo governo de extrema direita de Ramzan Kadyrov, um gerente de time de futebol convertido em líder local. Se o formato é bastante tradicional, muito televisivo, inclusive, o impacto é enorme. O porém — e é um grande porém — é que, se registra a violência para denunciá-la, o diretor faz isso de uma forma igualmente violenta: não poupa o espectador de cenas de ataques e agressões, inclusive sexuais, sob o pretexto da delação. A questão ética aparece forte, embora haja o cuidado de modificar digitalmente os rostos de todas as vítimas. É, sem dúvida, um trabalho importante, mas que levanta uma velha questão: afinal, qual o limite da exposição?

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Lista com todos os filmes que vi na Mostra de 2020 comentados aqui no blog.

Lista com todo os filmes da seleção já vistos no Letterboxd.

Informações básicas: a 44ª Mostra de Cinema de São Paulo acontece online a partir de 22 de outubro e vai até dia 4 de novembro. As informações detalhas sobre o evento e sobre cada produção exibida estão no site da Mostra. A maior parte dos filmes será exibida na plataforma Mostra Play, criada para o evento. Cada filme vai custar R$ 6 e pode ser comprado na própria plataforma com os cartões de crédito Visa e Mastercard. A compra é de um filme por vez e será liberada à meia-noite e um do dia 21 para o dia 22. Quase todos os filmes já poderão ser adquiridos no primeiro dia. Alguns só entram na segunda semana. A partir da data da compra, você tem 3 dias pra dar o play e, a partir do momento em que começa a ver o filme, tem 24 horas para terminar de assisti-lo. O longa “Casa de Antiguidades” vai ser exibido exclusivamente no Belas a la Carte. A compra deste filme será nesta plataforma pelo mesmo valor. Não é preciso ser assinante. Quinze filmes podem ser vistos gratuitamente na plataforma Sesc Digital e outros quinze serão disponibilizados também de graça no SP Cine Play.

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