17 Quadras ★★★
17 Blocks, Davy Rothbart

O retrato íntimo de uma família de dentro pra fora. “17 Quadras” É uma coleção de registros feitos ao longo de vinte anos tanto pelo documentarista Davy Rothbart quanto pelos irmãos Emmanuel e Smurf, de quem o diretor se aproximou quando eles ainda eram muito jovens. O filme nos convida a participar do dia-a-dia de um grupo de personagens disfuncionais, que envolve vício em drogas e relações com o tráfico. Como em “O Prisioneiro da Grade de Ferro”, de Paulo Sacramento, onde o poder de gravar está nas mãos de quem é retratado, as imagens registradas são bastante simbólicas porque revelam uma realidade que, a despeito das escolhas da edição, os próprios personagens escolheram expor, em sua “denúncia” de um ambiente onde o sentimento que os une compete com caos em torno deles. E isso é retratado tanto em sua esponeidade quanto de maneira encenada, consequências naturais do modelo de registro. À medida que o tempo passa, tanto Rothbart quanto o espectador desenvolvem uma relação com a família. A ele, cabe assumir o olhar e documentar momentos dolorosos e muito particulares para aquelas pessoas, ampliando o espectro do registro. Para quem assiste e também criou esse laço com os personagens, e se impressiona com o que esta família decide compartilhar, cabe construir sua própria versão do que significa e simboliza aquela história que acontece ali tão pertinho da sede do parlamento americano.

Apenas Mortais ★★★
Being Mortal, Liu Ze, 2020

Há uma sequência de imagens nos últimos três ou quatro minutos de “Apenas Mortais” que dão ao filme uma dimensão completamente diferente daquela em que Liu Ze situa sua história até então. Este aspecto sobrenatural, ou simplesmente mágico, poderia destoar totalmente do projeto, uma adaptação de uma novela de Li Yanrong, que segue sempre um estilo quase documental para contar o drama de uma mulher que tem um pai que sofre de Mal de Alzheimer. Se durante todo o filme, essa perspectiva factível, realista é bastante honesta e dirigida e interpretada com cuidado, o formato nunca permite que o longa cresça e desenvolva características próprias ou algum tipo de marca. No entanto, quando abandona sua lógica inicial e entra num terreno menos palpável, justamente nas últimas cenas, sua força cresce bastante. Principalmente porque Liu Ze encena tudo com muita delicadeza e segurança, aproveitando a potência dos cenários, quadros e situações que cria. A imagem final é inquietante.

Casa de Antiguidades ★★★
idem, João Paulo Miranda Maria, 2020

Um dos maiores méritos de “Casa de Antiguidades” é como João Paulo Miranda Maria consegue estabelecer uma atmosfera muito própria, esquisita, que combina elementos sobrenaturais, folclóricos e de fantasia com um sentimento de não pertencimento. As cenas iniciais, dentro da fábrica em que trabalha o protagonista, já mostram que a intenção é estabelecer um ambiente de desconforto. Imagens abstratas, de detalhes, personagens vestidos como se estivessem num filme de ficção-científica. É um esforço de construção bem interessante.

É nesse cenário incomum que somos apresentados ao personagem principal, Cristovam, um homem na casa do 70 anos que trocou Goiás pelo Sul já faz há algum tempo para conseguir manter seu emprego, sobreviver. Mas Cristovam nunca parece encontrar seu lugar numa realidade que insiste em ser muito diferente para ele. Mora isolado, não tem amigos, tem dificuldades de lidar com quem se aproxima, se resolve em si mesmo e é olhado com desprezo pelos moradores da região. Há vários momentos, com um clima construído como o de filmes de horror de perseguição, em que ele é tratado como um corpo estranho.

Mas a questão é que Cristovam é um homem negro num cenário onde o poder está, mais do que nunca, nas mãos de pessoas brancas. Então, o tópico do racismo, do ódio étnico, inerentemente vem à tona, embora nunca seja verbalizado num discurso, num debate mais concreto. O cineasta, que estreia num longa-metragem, afirma que nunca quis discutir intolerância racial, mas intolerância pura e simples, inclusive falando que o personagem tem muito de como ele se sentia em sua juventude, alguém que não cabia no ambiente em que vivia.

Parece justo, até porque Miranda Maria é um homem branco e estaria bem longe de seu lugar de fala para abordar essa questão, mas as coisas ficam um pouco contraditórias quando ele escolhe para Antonio Pitanga para assumir o papel principal. Pitanga não é apenas um homem negro, é um ícone negro, possivelmente o ator que mais simboliza a representação de uma etnia no cinema brasileiro. Sua escolha vem carregada de significados que conflitam com esse debate menos específico, mais amplo, que o diretor defende. Ao mesmo tempo, sua performance discreta é muito poderosa.

De outro lado, o aspecto sensorial que o filme muitas vezes assume, com um personagem que pouco fala, mas que demonstra uma conexão com a natureza e com o espiritual, remete a uma busca pessoal por sua própria ancestralidade, sua relação com o passado, com o boi que o acompanha desde sua terra natal, como esse fosse o único refúgio possível para que ele mantenha sua sanidade. Uma liturgia de auto-preservação. No entanto, este movimento ritualístico novamente esbarra na discussão étnica, o que torna algumas decisões em “Casa de Antiguidades” enigmas para se decifrar.

Cozinhar F*der Matar ★★★
Cook F**k Kill, Mira Fornay, 2019

As escolhas que a diretora Mira Fornay faz para discutir a violência contra mulher são arriscadas e bem surpreendentes. Ao optar pelo nonsense numa estrutura de paradoxo temporal, ela muitas vezes esbarra no deboche para retratar a agressividade que se esconde no cotidiano, dentro de quatro paredes. É um registro complexo porque a primeira impressão pode ser o contrário do que suas intenções pretendem, mas esse esqueleto cíclico de uma história que é reescrita o tempo todo termina simbolizando o círculo vicioso de um mundo construído para o protagonismo masculino e para o uso da força no ambiente doméstico. Quando o discurso fica mais claro, o filme assume um tom mais sério com o absurdo do humor negro inicial abrindo espaço para um absurdo muito mais palpável e assustador. Um filme que cresce quando pensamos nele de longe porque talvez não estejamos preparados para uma verdade muito incômoda.

Isso Não É um Enterro, É uma Ressurreição ★★★½
This Is Not a Burial, It’s a Resurrection, Lemohang Jeremiah Mosese, 2019

A imagem com que Lemohang Jeremiah Mosese abre seu filme é muito simbólica, mas só vai ganhar sentido ao longo de “Isso Não É um Enterro, É Uma Ressurreição”: em câmera lenta, vemos a imagem borrada de um guerreiro, armado com uma lança, atacar alguém em cima de um cavalo. A cena aparentemente não tem relação com a história que virá a seguir, mas, nestes poucos segundos, o diretor resgata uma herança de resistência ao invasor. Mosese mora em Berlim, mas nasceu no Lesoto, um pequeno reino encravado no meio da África do Sul, e é para lá que ele voltou para rodar seu segundo longa-metragem.

A personagem principal do filme é Mantoa, uma mulher de 80 anos que mora numa pequena comunidade e que atravessa mais uma das muitas tragédias pessoais. Acabou de enterrar seu último parente. Mergulhada num luto silencioso e dolorido, em que a consciência da solidão é massacrante, a protagonista se depara com mais uma injustiça que cruza seu caminho, a iminente inundação de sua vila pela construção de uma barragem. Mantoa não se preocupa com sua casa, com ter onde morar, a ela somente interessa o lugar onde descansam seus entes queridos, que também deverá ser coberto pela água.

Começa uma batalha em dois campos, o prático, o da mobilização, e o existencial, o do espírito, uma dualidade que Mosese equilibra quando contrapõe um texto engajado e uma atmosfera em que o tráfego entre o real e o mágico é perfeitamente possível. É uma harmonia difícil de estabelecer sem cair nas armadilhas e clichês do realismo fantástico, mas que o diretor consegue com moldar com muita sobriedade. Além da consciência do discurso que quer oferecer, ele tem um rigor absoluto com a fotografia, a composição de cada cena, mas carregando elas de simbolismo para que o filme não seja apenas uma experiência estética.

O que mais impressiona é que, com tantas pretensões e decisões arriscadas, Mosese segue o caminho da simplicidade e acerta em cheio. A força motora nessa jornada é a excelente Mary Twala Mhlongo, uma atriz sul-africana com passagem por filmes norte-americanos, de uma potência e uma autoridade fora do comum. Sua presença impõe respeito a essa ancestralidade de combate que o cineasta quer regenerar ao mesmo tempo em que evoca a espiritualidade tão presente na vida daquela comunidade. Mary morreu em julho deste ano. Mantoa é uma linda despedida, que a perpetua. Como sua personagem pontua, “esta não é uma marcha da morte. É a marcha dos vivos e dos mortos”.

Nossa Senhora do Nilo ★★
Notre-Dame du Nil, Atiq Rahimi, 2020

Ruanda é um país dividido entre duas etnias. Uma rivalidade que resultou no genocídio de 1994, quando pelo menos 500 mil pessoas de ascendência tutsi foram mortas pela maioria hutu. “Nossa Senhora do Nilo” é cheio de boas — e muitas — intenções. A maior delas é tentar reproduzir o sentimento que racha o país a partir de um microverso, uma escola para garotas numa montanha idílica, aparentemente longe de toda aquela tensão. O filme, baseado na novela do mesmo nome de Scholastique Mukasonga, tenta reproduzir o impacto que o livro teve quando foi lançado, mas falha em vários níveis. O primeiro deles é que o diretor afegão Atiq Rahimi não tem intimidade alguma com aquela realidade ao contrário da escritora que baseia parte do que escreveu em experiências pessoais. Seu olhar é o de um estrangeiro, um curioso, alguém que enxerga aquilo pelo lado exótico. Enquanto Lemohang Jeremiah Mosese, no filme comentado acima, se aproxima de sua protagonista tentando decifrá-la, para Rahimi aquelas meninas são apenas criaturas excêntricas. Apesar de várias da atrizes parecem talentos promissores, elas são condenadas a personagens estereotipados que servem apenas para montar uma narrativa aculturada, onde os temas parecem flutuar, mas nunca serem propriamente discutidos ou interpretados pelo filme.

A Visita ★★★
Lai Fang, Jia Zhang-ke, 2020

O filme que Jia Zhang-ke rodou durante a pandemia não é nem sobre a catástrofe de saúde pública que o coronavírus jogou sobre o planeta nem um relato melancólico sobre a solidão do confinamento. Esta pequena comédia, que dura só quatro minutos, usa a ironia e o absurdo para falar com delicadeza, sem dar lição de moral, sobre novos tempos e recomeços. Num momento em que se olha para o mundo com angústia e raiva, o cineasta chinês prefere achar beleza no imprevisto e se adaptar.

(+)

Lista com todos os filmes que vi na Mostra de 2020 comentados aqui no blog.

Lista com todo os filmes da seleção já vistos no Letterboxd.

Informações básicas: a 44ª Mostra de Cinema de São Paulo acontece online a partir de 22 de outubro e vai até dia 4 de novembro. As informações detalhas sobre o evento e sobre cada produção exibida estão no site da Mostra. A maior parte dos filmes será exibida na plataforma Mostra Play, criada para o evento. Cada filme vai custar R$ 6 e pode ser comprado na própria plataforma com os cartões de crédito Visa e Mastercard. A compra é de um filme por vez e será liberada à meia-noite e um do dia 21 para o dia 22. Quase todos os filmes já poderão ser adquiridos no primeiro dia. Alguns só entram na segunda semana. A partir da data da compra, você tem 3 dias pra dar o play e, a partir do momento em que começa a ver o filme, tem 24 horas para terminar de assisti-lo. O longa “Casa de Antiguidades” vai ser exibido exclusivamente no Belas a la Carte. A compra deste filme será nesta plataforma pelo mesmo valor. Não é preciso ser assinante. Quinze filmes podem ser vistos gratuitamente na plataforma Sesc Digital e outros quinze serão disponibilizados também de graça no SP Cine Play.

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