O Adivinhador ★★★
Stump the Guesser, Evan Johnson, Galen Johnson, Guy Maddin, 2020

O formato do curta-metragem cabe muito bem às idiossincrasias de Guy Maddin. Seu cinema, onde as estripulias visuais, sobreposições, exercícios de montagem, direção de arte e de fotografia rebuscadas estão sempre em primeiro plano, pode se esgotar num longa, mas nos 20 minutos de “O Adivinhador” as experimentações encontram um espaço perfeito. A história do filme, dirigido em parceria com os irmãos Evan e Galen Johnson, se situa numa feira de variedades, ambiente meio onde esse intervalo entre o real e o místico, que sempre se manifestam de alguma forma no cinema de Maddin, pode ser explorado de diversas formas. Além das experimentações visuais e de linguagem, o humor negro e os atores que entenderam bem a medida da caricatura permitem que os diretores explorem temas polêmicos que fazem mais sentido num cenário entre a inocência e a moral deturpada. Esteticamente, como sempre, é bem estimulante.

Al-Shafaq – Quando o Céu Se Divide ★★
Al-Shafaq – When Heaven Divides, Esen Isik, 2020

O limite entre as boas intenções e a exploração de uma cultura alheia pode ser bem tênue. E é nesse terreno árido que está “Al-Shafaq”, uma coprodução suíço-turca que conta a história de uma família síria expatriada para a Europa para fugir da guerra, mas que não escapa de suas repercussões. Parece um projeto digno, que tenta dar voz a uma cultura tolhida de sua liberdade, mas ao mesmo tempo é um filme que se apodera de um lugar de fala para entregar um produto comercial, sobre uma cultura “exótica”, que supostamente faz uma denúncia, mas também entrega uma “mensagem”. Tudo embaladinho para o circuito internacional de cinemas “de arte”. Todas as escolhas no longa de Esen Isik são cômodas, seguras e rasas: uma fotografia limpinha, cheia de filtros, uma dramaturgia novelesca, acompanhada de uma estrutura que conta a história em flashbacks, um subtítulo didático, “Quando o Céu Divide”. A discussão sobre uma questão tão complexa como a Guerra Santa é simplificada e se resume a estereótipos. “O Jovem Ahmed”, que também é um projeto questionável, pelo menos tem um olhar de diretor(es).

Limiar ★★
Threshold, Rouzbeh Akhbari, Felix Kalmenson, 2020

Para um filme com uma duração tão curta, pouco mais de uma hora, “Limiar” tem algumas das imagens mais bonitas deste ano. O longa passeia por diversos cenários naturais e ruínas de prédios históricos da Armênia, sob o pretexto de um roteiro que conta a história de um cineasta à procura locações para o seu novo filme. Existe um preciosismo na construção de cada quadro, é uma fotografia realmente bela, pensada nos mínimos detalhes e com um forte poder simbólico, mas o filme esbarra num grande problema: sem um prévio conhecimento sobre que lugares são aqueles, que história esses lugares contam, que traços da cultura armênia eles representam, muitas dessas imagens ficam simplesmente vazias, viram apenas paisagens deslumbrantes que carregam significados cifrados e que se resolvem puramente no estético embora esteja claro que a intenção dos diretores vai muito além disso. O impacto de cada plano se dissolve no instante seguinte, como aquela foto linda que você viu no Instagram e de que já esqueceu.

Mulher Oceano ★★★
idem, Djin Sganzerla, 2020

É interessante como a estreia de Djin Sganzerla como diretora persegue um caminho próprio, que não cai na tentação de espelhar nem o cinema do seu pai, nem os filmes dirigidos por sua mãe. Para a atriz experiente, é um novo começo e é importante encontrar sua (ou suas) identidade(s). Para isso, Djin se divide em duas, Ana e Hannah; atriz e diretora. E este conceito de dualidade marca “Mulher Oceano” em vários níveis. Ana trabalha num banco e tem como hobby nadar. É uma mulher do corpo, do prático, dos problemas da vida real. Hannah é escritora, no meio de uma crise conjugal, acabou de se mudar para outro país. É uma mulher da alma, do sentimento, cujos principais desafios são internos. Djin nos conduz através das histórias destas duas mulheres, que ela mesma interpreta, encontra paralelos em suas diferenças e tenta investigar quem elas são e o que elas estabelecem como metas para si mesmas. Nem sempre consegue as nuances em que claramente mira, muitas vezes deixa a falta de intimidade com a nova função transparecer, mas este primeiro filme indica, sobretudo, uma cineasta disposta a apostar no conceito de “travessia” como um objetivo de cinema.

Não Há Mal Algum ★★★
Sheytan Vojud Nadarad, Mohammad Rasoulof, 2020

Mohammad Rasoulof é um cineasta-ativista com uma longa ficha corrida. No cinema de cunho social e na delegacia. Sempre procura lançar um olhar humanista para os personagens de seus filmes que, por sua vez, tocam em questões delicadas da realidade iraniana como corrupção e autoritarismo. Já foi preso algumas vezes, teve o passaporte detido, foi proibido de filmar. Mas não para. “Não Há Mal Algum”, que ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlim, foi rodado em segredo em prisões do do Irã. Era um projeto proibido desde o berço, então, sua mera existência já é um êxito. Mas todo este contexto político e o fato de que o tema aqui é, resumidamente, a execução de prisioneiros no país, uma ousadia por si só, não escondem alguns dos vícios narrativos que o filme repete. Dividido em quatro histórias que tentam abordar várias nuances da questão, o diretor estrutura cada um dos contos em cima de um plot twist, uma fórmula que funciona muito bem no primeiro capítulo, mas que se desgasta a cada vez que é utilizada. Rasoulof é um bom encenador e a sequência que abre o filme mostra um cineasta que sabe criar uma atmosfera a partir do registro da banalidade do cotidiano, um bom diretor de atores, alguém que consegue ocupar e explorar os detalhes de seu cenário, mas quando a trama segue para o episódio seguinte e suas articulações dramáticas ficam mais evidentes, o filme perde muito de seu frescor. As estratégias de Rasoulof lembram a maneira com que Asghar Farhadi constrói seus roteiros, com a diferença de que um privilegia a “denúncia” e o outro investe mais nos personagens.

Nova Ordem ★★
Nuevo Orden, Michel Franco, 2020

Uma grande bandeira mexicana tremula antes da última cena de “Nova Ordem”, a mais recente “polêmica” de Michel Franco. A “classificação” cabe porque o diretor é um expert em filmes que fazem questão de serem desconfortáveis. Mas a imagem da bandeira mostra que as intenções são ainda mais ambiciosas desta vez. O longa, premiado no Festival de Veneza, pretende ser o retrato de um momento de instabilidade social no México (mas que a essa altura pode representar qualquer lugar no mundo), imaginando uma realidade distópica em que a tensão entre classes assume dimensões incontroláveis.

Franco é um encenador competente, sabe bem como provocar o efeito que precisa na hora de construir uma cena. Os primeiros 30 minutos deste novo trabalho tão sejam seu “melhor filme”. A maneira como estabelece as relações vazias e descreve a hipocrisia entre os membros da alta sociedade mexicana numa festa de casamento é bastante eficaz e, embora retrabalhe alguns lugares comuns, não necessariamente simplifica as discussões. O passo seguinte também não é o problema. Tivemos muito exemplos de filmes que tentam capturar esse espírito de insatisfação social que culmina em ações radicais e violências. Um exemplo recente é o ótimo filme brasileiro “Cabeça de Nêgo”, que, trabalhando numa escala menor, registra o surgimento desta reação como algo espontâneo e legítimo.

A diferença é o caminho que o diretor toma a partir deste momento, em que, para instigar respostas ao que apresenta, entra no terreno que mais incomoda em seu cinema, o do excesso, em que a violência explícita é utilizada para invadir a esfera do radical à força. Obviamente que dá pra entender onde ele quer chegar para vender sua “mensagem”. O triste é confirmar, filme após filme, que esta estratégia de estética do choque é sua única arma.

As Órbitas das Águas ★★½
idem, Frederico Machado, 2020

Nos últimos oito anos, Frederico Machado dirigiu cinco longas-metragens, com uma atenção especial à construção formal de cada um deles. Planejou todos os aspectos de suas fotografias, compôs quadros para cada cena, demonstrou um cuidado extra com o som, sempre buscando estabelecer uma linguagem cinematográfica para seus projetos. É uma trajetória respeitável num país em que poucos cineastas conseguem filmar com tanta constância. Seu novo longa, “As Órbitas da Água”, forma junto com “O Exercício do Caos” e “O Signo das Tetas” uma trilogia que ele chama de “dantesca”. Neste desfecho, o diretor maranhense explora com mais intensidade o lado sensorial de sua história. A chegada do casal de protagonistas a uma vila de pescadores no início do filme é, durante vários minutos, uma experiência sem diálogos, onde imagens e ruídos estabelecem um ambiente etéreo onde importa mais o movimento dos corpos do que a identidade dos personagens. Mas à medida em que eles ganham diálogos, funções mais definidas na trama e o filme procura um caminho mais narrativo, a força daqueles primeiros instantes se dissipa um tanto, o que não tira a originalidade e a ousadia de um projeto de cinema que persegue a autoria.

(+)

Lista com todos os filmes que vi na Mostra de 2020 comentados aqui no blog.

Lista com todo os filmes da seleção já vistos no Letterboxd.

Informações básicas: a 44ª Mostra de Cinema de São Paulo acontece online a partir de 22 de outubro e vai até dia 4 de novembro. As informações detalhas sobre o evento e sobre cada produção exibida estão no site da Mostra. A maior parte dos filmes será exibida na plataforma Mostra Play, criada para o evento. Cada filme vai custar R$ 6 e pode ser comprado na própria plataforma com os cartões de crédito Visa e Mastercard. A compra é de um filme por vez e será liberada à meia-noite e um do dia 21 para o dia 22. Quase todos os filmes já poderão ser adquiridos no primeiro dia. Alguns só entram na segunda semana. A partir da data da compra, você tem 3 dias pra dar o play e, a partir do momento em que começa a ver o filme, tem 24 horas para terminar de assisti-lo. O longa “Casa de Antiguidades” vai ser exibido exclusivamente no Belas a la Carte. A compra deste filme será nesta plataforma pelo mesmo valor. Não é preciso ser assinante. Quinze filmes podem ser vistos gratuitamente na plataforma Sesc Digital e outros quinze serão disponibilizados também de graça no SP Cine Play.

Comentários

comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *