Está na essência do que aprendemos a chamar de América. Há os heróis e sempre haverá os vilões. Ao longo de toda sua história, os Estados Unidos se guiaram por uma lógica simples que remete às mais ingênuas brincadeiras infantis: a lógica do bem contra o mal. O americano médio parece se enxergar como predestinado a espalhar justiça pelo mundo, apontando inimigos e se lançando para destruí-los. Se essa porção messiânica da alma americana já se manifesta sem um perigo iminente, apenas pela ameaça, pela possibilidade, o que dizer quando um homem comanda um ataque real, concreto, que mata milhares de pessoas, destrói um símbolo da América e abala profundamente o orgulho de seu povo?
Sem juízo de valores. Por mais de uma década, Osama Bin Laden não foi apenas o vilão da história, o inimigo público número 1 dos Estados Unidos. Ele foi uma meta. Matar o homem que ordenou o ataque às Torres Gêmeas se transformou numa espécie de missão divina, onde um país obcecado por impor sua verdade se libertou de seus últimos melindres para fazer valer a lei do olho por olho. Tudo sob a égide de estar praticando a justiça, protegendo suas fronteiras e seus habitantes e, de quebra, fazendo um favor para o mundo. A América parecia finalmente apontar para um vilão real.
Kathryn Bigelow, que já havia pisado neste terreno em Guerra ao Terror, filme que lhe rendeu o Oscar, resolveu contar esta história, a história da obstinação americana em matar um homem. Um dos aspectos mais interessantes de A Hora Mais Escura é justamente o fato de que o projeto de registrar esta gigantesca operação surgiu enquanto a caçada a Bin Laden acontecia. A intenção de Bigelow, contrariando uma tradição americana, não estava em mostrar, muito menos celebrar, a vitória dos Estados Unidos diante de seu inimigo. O filme era muito mais sobre a América e os americanos do que sobre capturar ou matar um terrorista.
O roteirista Mark Boal teve acesso a detalhes da operação militar em busca de Bin Laden. Acesso que gerou uma infinidade de acusações, desde a de que o governo de Barack Obama teria sido conivente com o filme num ano em que o presidente tentaria a reeleição até a de que o longa se colocaria a favor da tortura, o que diminuiu drasticamente sua chance nos principais prêmios de cinema do ano. A personagem de Jessica Chastain, inspirada numa agente real, comanda pessoalmente uma série de sessões de tortura contra pessoas ligadas à Al Qaeda, sobre o pretexto (ou, numa visão mais americana, “com o objetivo”) de chegar ao líder do grupo terrorista.
Mas, ao contrário do que foi sugerido, Bigelow nunca se posiciona como defensora dos métodos da protagonista (ou do governo americano). Essa insinuação vai de encontro à própria natureza do filme, que parece existir realmente para tornar os fatos públicos, sem adotar posturas ou fazer juízos sobre personagens e ações, mas evidenciando a fórmula de “os fins justificam os meios” com que o país opera para conseguir seus objetivos. O tom documental credibiliza o estudo da diretora sobre o pensamento americano, mas ela não se furta de fazer do filme um longa com momentos alucinantes que, se servem ao espetáculo cinematográfico, também refletem o estado de espírito do soldado americano, tomado pela sensação de missão a cumprir.
A Hora Mais Escura desperta múltiplas leituras. É possível acompanhar o filme tanto pelo olhar clínico de Bigelow quanto pelo lado do herói que quer vencer o vilão. E a morte deste “vilão” durante o desenvolvimento do projeto, o que remodelou o filme, de certa forma amenizou a crítica da diretora. Com um “fim”, um objetivo cumprido, a meta dos militares ganhou uma espécie de nobreza inesperada, uma certa justificativa que esvazia um pouco a ideia inicial de que o americano está sempre atirando num inimigo invisível.
A Hora Mais Escura ½
[Zero Dark Thirty, Kathryn Bigelow, 2012]
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