No final de uma sequência de sexo em que praticamente todo o elenco de Os Amantes Passageiros vai às vias de fato é que o novo filme de Pedro Almodóvar se revela. Bruna, personagem de uma ótima Lola Dueñas, no ímpeto de responder aos estímulos sensuais que uma dose caprichada de mescalina com álcool provocou em seu corpo, se aproveita de um passageiro da classe econômica, indefeso, dopado pela tripulação do avião, cenário de 90% do longa. A cena, de riso fácil, que passa à primeira vista por um esquete de um programa de um humor televisivo, desnuda um filme sobre classes travestido de comédia rasgada.
O travestismo faz parte do leque de assuntos a que Pedro Almodóvar se dedica em sua obra. Mas aqui quem se transforma não é um personagem como em A Lei do Desejo, De Salto Alto ou Má Educação, mas sim o próprio filme. As piadas de cunho sexual, a afetação de alguns personagens e o vocabulário debochado provocam a impressão de que Os Amantes Passageiros seria, para os mais entusiastas, apenas uma diversão ligeira, uma volta às origens do diretor, ou, para os detratores, uma experiência de mau gosto, um tropeço em temática e estilo. Talvez o filme até guarde um pouco dessas duas definições, mas resumi-lo a isso não é muito justo.
O avião da Peninsula passa por problemas em seu trem de aterrissagem e não vai poder pousar no México. Nem sai do espaço aéreo espanhol para ser mais específico. Para conter uma onda de pânico, a tripulação decide dopar os passageiros, ou melhor, os passageiros da classe econômica, enquanto os poucos ocupantes das poltronas da primeira classe ficam cientes da situação. Embora tenha dito que escreveu o roteiro antes da crise econômica por que passa a Espanha, Almodóvar escondeu entre suas gags e personagens típicas (uma sensitiva, uma dominatrix, um assassino de aluguel) um forte discurso político sobre como se comportam as diferentes classes sociais.
Enquanto os passageiros do fundo dormem, alheios a toda a movimentação que acontece no avião, sem direito a voz ou a uma simples espiada, os protótipos de uma burguesia de discreto charme se revelam para o espectador. Há o empreiteiro que foge do país deixando um rastro de obras superfaturadas e incompletas. Há o casal de noivos, que em certa medida representa a juventude rica do país e que prefere ignorar o que está na sua frente para passar praticamente o voo inteiro chapado. Há a personagem de Cecilia Roth, excelente, uma cafetina que mantém os clientes sob rédea curta, ameaçando-os com vídeos de suas experiências sexuais, mostrando que a chantagem está na base das relações da primeira classe. E há os três comissário de bordo, gays, divertidos, coloridos, que estão ali não apenas para servir, mas para entreter a população abastada da Espanha, esperando que isso possa ajudar na hora do choque.
Se não reflete a situação atual de seu país, o filme é uma metáfora divertida sobre como poder e dinheiro conquistam valiosos produtos como informação e privilégios. A resposta a uma questão aparentemente simples poderia ajuda a situar Os Amantes Passageiros na filmografia de Almodóvar: na segunda metade dos anos 90, quando deu uma nova direção para seu cinema, o diretor mudou de objeto ou começou a lapidar seu estilo? O problema é que a interpretação para essa questão é bastante subjetiva. A julgar por esse novo filme, que nem está entre os melhores do diretor, quem acredita que suas comédias abusadas, quase anarquistas, falam sobre temas diferentes de seus melodramas intensos, orgulhosamente latinos, parece ser convidado pelo cineasta a se sentar na classe econômica do voo da Peninsula.
Os Amantes Passageiros
[Los Amantes Pasajeros, Pedro Almodóvar, 2013]
Três estrelas, Chico, que maldade.. esse filme pra mim é de longe do melhor dele desde muito tempo.
Franz, arrebentou!
doida p assistir
Chico, estás de parabéns. Creio ser esse o melhor comentário que li a respeito de Os Amantes Passageiros, o mais revelador, o mais interessado em reverberar o discurso do cineasta. É uma obra menor? Talvez. Mas é um filme irrelevante? Não. Este parece ser um típico caso de filme que só irá melhorar com o tempo – vamos esperar uns 10 anos para ver se não será chamado de "obra incompreendida"…
Valeu, Robledo.