Riocorrente
[Riocorrente, Paulo Sacramento, 2013]
“As ideias precisam voltar a ser perigosas”, afirma a protagonista de Riocorrente, filme de Paulo Sacramento escolhido pelo júri da Abraccine como o melhor da Mostra de Cinema de São Paulo. A frase, além de traduzir a inquietude das personagens do primeiro longa de ficção do diretor, parece ser uma pista das intenções do próprio cineasta na realização de seu filme. Poderoso retrato da opressão da metrópole sobre o homem, Riocorrente assume um lugar diferenciado na recente produção cinematográfica brasileira. Seus simbolismos, ao mesmo tempo em que conversam com um cinema de “mestres malditos” de outras gerações, emolduram um debate completamente contemporâneo. Sacramento ousa no discurso e ousa ainda mais na forma. O cineasta está disposto a provocar e, para isso, não se acanha em materializar suas “ideias perigosas”, explosivas, que revelam um homem inconformado com o status quo, um artista em perpétuo desconforto e, mais do que isso, um cinema que não se contenta em ser um só.
Depois da Chuva ½
[Depois da Chuva, Cláudio Marques & Marília Hughes, 2013]
Essa inquietude aparece também em outro longa de estreia presente na Mostra: Depois da Chuva, de Cláudio Marques e Marília Hughes. Mas no filme que abre espaço para outra frente de produção no cinema nordestino, a Bahia, o incômodo dos personagens – e dos cineastas – é diferente. É um incômodo com as convicções. O protagonista, criado a partir das experiências pessoais de Marques, não encontra respostas nem no clima de esperança fabricado pelo movimento Diretas Já, nem no discurso empírico do grupo de anarquistas a que se junta. A fúria silenciosa do personagem só encontra voz no fortíssimo movimento punk rock baiano do início dos anos 80, praticamente desconhecido fora do estado e recriado com certa ousadia pelos diretores. Marques e Hughes abriram mão do quase irresistível estereótipo baiano para fazer um filme sem sotaque, mas com outros temperos. Eles apontam para uma Bahia diferente, de classe média, que não é afro, onde as pessoas escutam rock. Os passos do protagonista nesse terreno tanto universal quanto particularmente soteropolitano são tão surpreendentes quanto algumas opções dos diretores.
De Menor
[De Menor, Caru Alves de Souza, 2013]
A opção é justamente o que dá o diferencial a De Menor, filme da também estreante Caru Alves de Souza. Filha da cineasta Tata Amaral, a diretora evita os caminhos mais tradicionais – e mais fáceis – para tratar de uma das questões mais exploradas pelo cinema brasileiro, a do jovem que se envolve com o crime. Caru oferece um novo olhar para o tema ao escolher lidar com o problema por dentro. Ela evita mostrar a ação em si para tratar de suas consequências na relação entre dois irmãos e decide também esmiuçar o processo jurídico. O único senão ao filme é o didatismo, em alguns momentos excessivo. O texto decorado, quase declamado, na primeira cena da defensora diante do juiz tem momentos constrangedores, mas não impede que a cineasta construa um roteiro cheio de delicadeza e intimista, que encontra em Santos um cenário original para um filme com um tema como este. Esta vontade de escapar da obviedade, mesmo que possa frustrar o espectador, ávido por acompanhar a ação, é uma das particularidades do filme.
Amor, Plástico e Barulho ½
[Amor, Plástico e Barulho, Renata Pinheiro, 2013]
Outro longa que trabalha a frustração em sua premissa – de história e de cinema – é Amor, Plástico e Barulho, de Renata Pinheiro. A pernambucana, que estreia em ficções, invade a gigantesca cena da música brega no Recife, criando um espécie de versão “cultura popular” de A Malvada, onde uma jovem dançarina não mede esforços para chegar à condição de estrela, que ela acredita que sua musa inspiradora já alcançou. A frustração aparece tanto na tentativa da aspirante quanto na desilusão da veterana – e Renata a utiliza também como método de cinema: para traduzir a efemeridade desse universo, a diretora arquiteta uma série de situações para, na hora h, frustrar as expectativas e não permitir catarses. O espectador não tem chance de ver o “nascimento” da estrela, mas em contrapartida é bombardeado por uma série de imagens de YouTube, como se a cineasta dissesse que ali está seu futuro. O duelo de interpretações é excepcional. Tanto Nash Laila quanto Maeve Jinkings, uma das melhores atrizes brasileiras do momento, estão excelentes em seus papeis.
O Lobo Atrás da Porta ½
[O Lobo Atrás da Porta, Fernando Coimbra, 2013]
O elenco cheio de talentos é um dos grandes trunfos de outro filme, O Lobo Atrás da Porta, estreia de Fernando Coimbra na direção. Leandra Leal, Milhem Cortaz, Fabiula Nascimento e Juliano Cazarré chamam a atenção, mas o filme é bem mais do que seu casting. Em seu primeiro longa, Coimbra revela um impressionante domínio de cena. É raro ver um filme brasileiro que se propõe a fazer um cinema narrativo clássico com tanta competência, principalmente em se tratando da reconstituição de uma história real – e bastante conhecida. O roteiro abraça um ritmo tranquilo, o que O filme é extremamente bem fotografado, tem uma montagem e um roteiro exemplares, rigorosos, mas cheios de fluidez, e um trabalho sonoro que captura as interferências externas para dentro da história principal.
O Exercício do Caos ½
[O Exercício do Caos, Frederico Machado, 2013]
O som é um dos personagens principais de O Exercício do Caos, belo filme de estreia de Frederico Machado, primeiro longa maranhense que ganha distribuição nacional. O cineasta aposta numa narrativa com poucos diálogos, mas que encontra numa excelente composição sonora a forma ideal para traduzir a anestesia da rotina da família que protagoniza o filme. O som ambiente, sempre alto, ultrapassa a realidade daquelas pessoas, como se servisse de cortina e de clausura para os personagens. Machado consegue capturar um certo elemento fantasmagórico que coabita a fazenda onde a trama se passa. O filme tem um dos conjuntos técnicos mais harmônicos e rigorosos entre os longas brasileiros exibidos na Mostra, o que, num trabalho mais conceitual, corre o risco de virar matéria-prima, mas que em O Exercício do Caos emolduram um projeto sólido, com um algo existencialista, ambicioso sem dúvida, mas que não cede à afetação.