[o conto da sereia]

Eu tenho este blogue há quase quatro anos, mas assisto sistematicamente a filmes desde pelo menos dez anos antes. Acredito que a principal característica do que eu escrevo sobre cinema não tenha a ver com quantidade de informações ou capacidade analítica, mas passe principalmente pela minha passionalidade em relação ao que vejo. Meu envolvimento pessoal com um filme conta talvez exageradamente no momento eu que eu sento a bunda na cadeira com o intuito de escrever.

Muitas vezes acredito que possa ter superdimensionado alguns filmes, mas de um tempo para cá acontece uma coisa curiosa comigo: eu reconheço o meu filme do ano assim que eu o assisto; no fim da sessão. Foi assim com Bem-Vindos, em 2001; com Elefante, em 2004; e eu supunha que havia acontecido o mesmo com O Novo Mundo, neste ano.

Eu estava enganado. Porque eu acabei de sair da sessão daquele que, salvo um engano muito grande, deve ser o meu filme do ano. Eu não tinha grandes expectativas em relação a A Dama na Água por um motivo um pouco estúpido: o filme anterior do diretor, A Vila. Falar sobre este outro trabalho aqui não vem bem ao caso, mas, em linhas gerais, acho que A Vila não consegue fazer um boa transição para seu ato final, que sempre me pareceu uma tentativa desesperada e apressada de se estabelecer como criador contemporâneo, como pensador do mundo atual. Hoje, eu diria que eu preciso ver o filme de novo. E a culpa é de A Dama na Água.

Que fique bem claro que este não é um filme para todos. Mas, por favor, não há mérito para mim ou demérito para quem quer que seja ter gostado ou não do filme. M. Night Shyamalan, na sua curta, mas intensa carreira, ocupa um espaço bastante particular no cinema atual. Ele é o defensor da fábula. Muito mais do que Tim Burton e seus recentes filmes simpáticos, porém mal resolvidos, Shyamalan consegue, através de caminhos arriscados e louváveis se impor como o guardião do lúdico, seja falando de mortos, super-heróis, aliens ou contos de fada. Cada um de seus filmes, independentemente de seu sucesso (narrativo ou de linguagem), tenta superar um desafio lançado na película anterior. Para fruir corretamente o cinema do indiano, o essencial é acreditar.

Em Sexto Sentido e em Sinais esta crença tem mecanismos e exigências diferentes. São filmes com temática mais adulta, que demandam crenças de adultos. Em A Vila, a despeito de eu fazer muitas reservas a como isso se estabelece, Shyamalan desconstrói a crença do espectador. Já A Dama na Água, assim como em Corpo Fechado, o diretor cobra mais de quem vê o filme. Estamos diante de um acreditar infantil, ingênuo, primitivo, ou, caso se prefira, uma crença com raízes absolutamente ligadas ao despojamento e à disponibilidade de uma criança de assimilar uma história como possível.

Embora em dezenas de momentos metalingüísticos, Shyamalan subverta certas regras dos contos de fada e, inclusive, se dedique a dissertar sobre o processo narrativo com cenas que ora são brilhantes, ora são exageradas e desnecessárias, é um certo encanto poético que domina a história do zelador do condomínio que descobre algo mais na piscina de que toma conta. Confesso que assisti a muitas das cenas com vontade de chorar. Não apenas por ter embarcado no mundo fantástico que o filme apresenta, mas por perceber em cada plano trabalhado, na utilização da música, na pontuação da maioria das cenas, como – e o quanto – este diretor defende o poder da imaginação e suas estruturas invisíveis.

E foi assim que eu saí do cinema, no meio de uma platéia em que a maior parte dos espectadores achou muito bem feitas as cenas de susto ou comentava o que faltava aparecer no filme. Eu, ainda encantado com as profecias de Story e com todo o exército que se forma em prol de um objetivo comum, a la Crise nas Infinitas Terras, guardando as devidas proporções, corri para casa para escrever este texto simplista e extremamente passional.

A moral da história é a seguinte: se você não é criança, pode achar este filme ruim ou bobo ou simpático e isso não vai fazer mal a ninguém, nem a você. Mas se você é uma criança de verdade, você vai entender tudo o que eu escrevi aqui porque você vai acreditar. E o resto que se dane.

[a dama na água ]
direção e roteiro: M. Night Shyamalan.
elenco: Paul Giamatti, Bryce Dallas Howard, Noah Gray-Cabey, Jessica Graham, Cindy Cheung, Bob Balaban, Sarita Choudhury, Brandon Cook, Mary Beth Hurt, Freddy Rodríguez, M. Night Shyamalan, Brian Steele, Jeffrey Wright.
fotografia: Christopher Doyle. montagem: Barbara Tulliver. música: James Newton Howard. desenho de produção: Martin Childs. figurinos: Betsy Heiman. produção: Sam Mercer e M. Night Shyamalan. site oficial: A Dama na Água. duração: 110 min. Lady in the Water, Estados Unidos, 2005.

 

nas picapes: [lullaby, the cure]

 

Comentários

comentários

59 comentários sobre “A Dama na Água”

  1. será que só eu analisei pelo contexto político?

    http://enloucrescendo.com/?p=85

    engraçado que eu disse que as pessoas não gostaram na sua maioria porque tomaram o filme como infantil, e sua exaltação está justamente aí, o que me acrescentou ainda mais. e sim, amigo, dê uma nova chance à Vila.

  2. Antes tarde do que mais tarde:

    ?A Dama Na Água? é um grande filme.

    Obviamente, ele exige o/a tal ?suspension of desbelief?. Mas se você consegue isso o filme consegue ser mais do que um mero filme.

    A história tem muito (eu achei) de Neil Gaiman, na forma como ela insere a fantasia no dia-a-dia. Aliás, lembra bastante (eu achei) ?Um Jogo De Você?. Inclusive o vilão dessa HQ é muito parecido, fisicamente, com o crítico de cinema. Eu quase achei que ele seria o Cuco ou um servo do Cuco (ou coisa similar que o valha na ?fábula? Shyamalanesca) da história. Só que seria um pouco óbvio (e até propicio ocorrer) tal revelação na seqüência do corredor da lavanderia. Melhor mesmo o crítico ser apenas um déspota esclarecido. Mesmo sendo bastante insatisfatória, essa seqüência metalingüística me pareceu ser apenas isso: uma seqüência metalingüística de humor e ironia que não teve muita graça por absoluta falta do timing que o resto do filme esbanja (inclusive pro humor). Mas não interferiu no resultado final (eu também sou partidário de que até obras-primas tem defeitos – e até dos defeitos do que eu considero obras-primas eu gosto).

    É certo que “A Dama Na Água” não chega a ser uma obra-prima para mim. Mas eu me diverti. E me emocionei. E me fez bem.

  3. quando aos prêmios de filme falado, eu só posso contrapôr outro fenômeno como o premiadíssimo e cinematograficamente indigente Amarelo Manga. Prêmio não significa nada, e a contracampo, embora seja um site que eu adore e referência pra mim, às vezes viaja legal….

  4. “Um Filme Falado” foi um dos cinco melhores filmes do ano passado segundo a Liga dos Blogues. Teve quatro indicações ao Alfred (filme, direção, cena do ano – o final – e roteiro). Ganhou a última. Além disso, teve a maior nota média de toda a história dos rankings mensais da liga (9,33). Foi saudado pela Contracampo e por todas as outras revistas eletrônicas brasilkeiras.

    Acho que se tem que parar com esse ranço com o Spielberg porque, para a surpresa de muitos que ainda continuam com o discursozinho estudantil de renegar o cara só porque ele faz bilheteria, porque ele é muito bom. Sinceramente essa discussão sobre se ele é bom ou não é rasa e velha.

    Quanto a “A Dama na Água”, eu vi um filmaço. Quem não viu, vai achar um filmaço em outro filme. Pena.

  5. filme falado? porquê? te enganaram também. acontece com os melhores cinéfilos…

    mas olha, seu texto está lindo. você precisa encontrar um receptáculo (filme) digno de idéias tão belas sobre as histórias que contam o mundo (fábulas).

    Falo isso como alguém que compartilha não só da admiração por Shyamalan, como de todos os ideais expostos em seu texto. Eu quis acreditar – mas não deu. Boas sacadas, momentos interessantes e só. Se é pra “melôzar” a parada, Shyamalan não é Spielberg (não que eu goste de Spielberg). ABraço!

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